quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Traição tem perdão?

Renata Moreno
 
 
Há quem diga que o pior dos sentimentos é a dor da traição. Perdoar é difícil. Traídos e traidores, todos terão seus argumentos, mas no final o que sobra é a incompreensão. “Porque comigo?”. “O que eu fiz de errado?”. Nesses casos, é importante saber que o primeiro e o último amor de uma pessoa deve ser o amor próprio!

Os desconfiados desafiam a traição e sabem bem que somente o inimigo não trai nunca! Até os santos já caíram nas suas armadilhas. “(...) ao traduzir a Bíblia para o latim, São Gerônimo confundiu-se e fez com que Moisés descesse do Monte Sinai, carregando as Tábuas da Lei, com dois "chifres de luz" na cabeça, - quando na realidade o profeta tinha dois "fachos de luz" a encimá-lo. O grande pintor italiano Michelangelo acreditou no santo e fez a famosa estátua de Moisés com dois chifres.” (Haroldo de Campos - O tradutor é um transfigurador).

Isso mesmo! Estamos falando da traição na comunicação, um campo minado, pois levando em consideração que a principal função da linguagem é estabelecer comunicação, logo “vale tudo” para ser compreendido?

Veja um exemplo inusitado, e que foi amplamente divulgado pelo youtube, no qual um “candidato” a turista argentino fala ao telefone com o atendente de uma pousada no Brasil:

- Alo? Hablo com a Pousada do Mar?

- Como vai? Como estái? Yo quiero por uma habitacionzinha que você tiene em su hotelzinho. Você me entenchi? Eu um aviso em internechi, em la habitação, em la praia...

- Ah! Está em frenchi? Me gosta, me gosta moito...

- Uma última preguntação, el hotelzinho teim desayunação incluído?

Devido à natureza comum do Português e do Espanhol, a comunicação entre hispanofalantes e brasileiros é, muitas vezes, instantânea e a interação se encaminha logo na direção comunicativa.

Mas o que há de mal nisso? A questão é que os agentes da comunicação acabam usando uma interlíngua, popularmente, conhecida como “portunhol”. Há quem advogue a favor do “portunhol”, como um processo esperado entre aprendizes, mas falar portunhol não é falar uma língua, mas falar palavras de outra língua.

Veja outro exemplo. Um empresário brasileiro recebe um telefonema de seu maior cliente, um venezuelano:

- Decidimos cancelar ahora el pedido - dizia o venezuelano, bem humorado.

- Como cancelar? - perguntou o brasileiro suando frio e tendo taquicardia.

- Si, vamos a cancelar ahora. ¿No prefieres así?

- No, no y no! - respondeu o brasileiro, já descontrolado, aos gritos!

Cancelar em espanhol é pagar! Cancelar a dívida.

É certo que existem dois tipos de língua: a língua como norma e a língua enquanto prática daqueles que a falam. Todavia, hoje, devido às relações comerciais tornou-se “imperioso” saber corretamente o espanhol, pois o “portunhol”, já não é suficiente para dar conta da comunicação oral objetiva.  E nesse sentido: TRAIÇÃO NÃO TEM PERDÃO!

 


Amigos cada vez mais falsos...

Renata Moreno


Quem já foi vítima de um falso amigo sabe muito bem o pesadelo que isso nos causa. O pior é que os falsos amigos estão por toda parte, em cada esquina. Por isso todo cuidado é pouco! Além do mais, os falsos amigos gostam mesmo de se passar por melhores amigos, que é para farsa durar bastante. Até mesmo entre irmãos a falsidade existe e ai aparentar ser o que não é torna-se inclusive perigoso.
Mas calma, não estamos falando das relações humanas em nosso trabalho, nosso lazer, nossa família e outras tantas mais, estamos falando dos heterossemânticos.
Os heterossemânticos ou falsos cognatos são pares de palavras de origem comum, ou seja, verdadeiros cognatos, entre dois idiomas distintos, mas que sofreram evoluções semânticas distintas em seus significados e, por isso, interferem tanto no processo de comunicação entre os interlocutores dos dois idiomas.
A denominação falsos amigos não é científica, trata-se apenas de uma maneira irônica de denominar essas armadilhas que esses falsos aprontam! Eles podem estar presentes em vários idiomas, como por exemplo, entre: português x francês; português x inglês; português x alemão.
Essas palavras podem ser semelhantes, ou até mesmo idênticas, tanto na grafia como na pronúncia. Um heterossemânticos bem comum entre as línguas inglesa e portuguesa é a palavra actually, que a maioria traduziria como “atualmente”, mas em inglês é muito mais usada com o significado de “na verdade” ou “de fato”.
Entre a língua francesa e portuguesa podemos ver exemplos muito interessantes e até mesmo cômicos. O professor Gabriel Perissé lembra que a palavra crachá “Provém do francês crachat, cujo primeiro significado é ‘escarrada’, ‘cusparada’”.
A confusão pode ficar ainda maior quanto maior é a semelhança entre os idiomas. O português que usamos hoje tem a mesma origem do espanhol (ou castelhano) que nossos “Hermanos” usam ali nos países vizinhos. São línguas românicas que têm muito em comum. O espanhol é, com exceção do galego, a língua que tem mais afinidade com o português. Exemplos e confusões hilárias, até mesmo situações trágico cômicas, como a de um aluno brasileiro, candidato a uma vaga em uma universidade espanhola, protagonizou a seguinte situação:
- A senhora me perdoe, mas eu não falo espanhol. A senhora pode perguntar em espanhol, mas vou responder em português.
- De acuerdo. ¿Cómo se llama usted?
- Fulano de tal.
- ¿Vive usted aquí?
- Não, senhora.
- ¿ Está usted casado?
- Sim, senhora.
- ¿ Ha traído usted a su mujer?
E depois de uma breve pausa:
- Sim, senhora, muitas vezes.
É justamente a semelhança que atrapalha, e o risco de cometer gafes é cada vez maior! Não se engane ao dizer que compreende espanhol somente porque fala português.
 
 
 

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Si Dios quiere y la vaca pinta

Don Domingo era el dueño de aquellas tierras. Mirando desde la casona alta, todo lo que alcanzaban los ojos era de don Domingo. Viejo charro mañoso que había acumulado una fortuna a puro golpe de ñeque.
Esta mañana, apenas salido el sol, tras un breve sustento de café y unos tacos, se vino al patio y se montó en su hermoso ruano de paso brioso y belfos resoplantes.
-¡Adiós, patrón! - le gritó el viejo sirviente.
-¡Adiós, Chonete! dijo el patrón.
-Que vuelva temprano, si Dios quiere.
Y don Domingo, hombre macho y mal creyente, entre broma y entre burla, le dijo:
-Dios no se mete en esto, Chonete. Manda más mi caballo.
Apretó espuelas y arrancó el caballo dando un salto. Todo el camino era alegre, pero se le olvidó que, al salir de las trancas, en estos días habían dejado suelta a la vaca. ¿La vaca? ¡La vaca brava! Cuando se acordó, ya era tarde. Se apareció la vaca y empinó al caballo y al amo... y a los dos los mandó al hospital. Cero viaje.
 
* * * * * * * * * * * * * * *

Le remendaron los huesos y le quitaron los yesos... y volvió el patrón don Domingo a sus viejos quehaceres. Todo siguió como antes. Hasta la vaca brava, «La Pinta» mañosa, siguió asustando a los charros que cruzaban por las trancas para probar su valentía. En una mañana alegre, de esas de cielo azul y sol caliente, desayunó don Domingo muy temprano y se montó en el tordillo, porque aún no estaba bien el desdichado ruano. Se montó en el tordillo y picó espuela: «¡¡Yepaaa!!» Y sonó la imprescindible voz del viejo sirviente que siempre le despedía.
-¡Adiós patrón! ¡Que vuelva temprano, si Dios quiere!
Esta vez don Domingo tuvo miedo. ¿Y si Dios en verdad se metiera en estas cosas? Se le metió martillando en el cerebro la despedida de su sirviente: «Adiós, Patrón. Que vuelva temprano SI DIOS QUIERE! Esta vez su respuesta fue diferente. Por eso dijo:
-Si Dios quiere, Chonete, y la vaca pinta.
Y picó espuelas.




 

Uns braços

Machado de Assis
 

 
Inácio estremeceu, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco.
- Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! maluco!
- Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se para D. Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, há anos. Confunde-me os papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a outro, troca os advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De manhã é o que se vê; primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos... Deixe; amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura!
D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges espeitorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens.
Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça, ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870.
Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruído da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava logo calado.
Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.
Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.
Acabaram de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos da algibeira, comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os restantes. Aceso o charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D. Severina de trinta mil coisas que não interessavam nada ao nosso Inácio; mas enquanto falava, não o descompunha e ele podia devanear à larga.
Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dois, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa. Vá que disfarçasse com S. João, cuja cabeça moça alegra as imaginações católicas, mas com o austero S. Pedro era demais. A única defesa do moço Inácio é que ele não via nem um nem outro; passava os olhos por ali como por nada. Via só os braços de D. Severina, - ou porque sorrateiramente olhasse para eles, ou porque andasse com eles impressos na memória.
- Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador.
 Não havia remédio; Inácio bebeu a última gota, já fria, e retirou-se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto de zanga e desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma coisa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar. Havia cinco semanas que ali morava, e a vida era sempre a mesma, sair de manhã com o Borges, andar por audiências e cartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde, jantava e recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe dava intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs; cinco semanas de silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada.
- Deixe estar, - pensou ele um dia - fujo daqui e não volto mais.
Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso. Agüentava toda a trabalheira de fora toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços.
Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma coisa Rejeitou a idéia logo, uma criança! Mas há idéias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra idéia não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim.
- Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa.
- Não tenho nada.
- Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos...
E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente incapaz de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau. D. Severina interrompia-o que não, que era engano, não estava dormindo, estava pensando na comadre Fortunata. Não a visitavam desde o Natal; por que não iriam lá uma daquelas noites? Borges redargüia que andava cansado, trabalhava como um negro, não estava para visitas de parola, e descompôs a comadre, descompôs o compadre, descompôs o afilhado, que não ia ao colégio, com dez anos! Ele, Borges, com dez anos, já sabia ler, escrever e contar, não muito bem, é certo, mas sabia. Dez anos! Havia de ter um bonito fim: - vadio, e o côvado e meio nas costas. A tarimba é que viria ensiná-lo.
D. Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, o caiporismo do compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais. A noite caíra de todo; ela ouviu o tlic do lampião do gás da rua, que acabavam de acender, e viu o clarão dele nas janelas da casa fronteira. Borges, cansado do dia, pois era realmente um trabalhador de primeira ordem, foi fechando os olhos e pegando no sono, e deixou-a só na sala, às escuras, consigo e com a descoberta que acaba de fazer.
Tudo parecia dizer à dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita a impressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação moral que ela só conheceu pelos efeitos, não achando meio de discernir o que era. Não podia entender-se nem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e ele que mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estacou: realmente, não havia mais que suposição, coincidência e possivelmente ilusão. Não, não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o acanhamento, as distrações, para rejeitar a idéia de estar enganada. Daí a pouco, (capciosa natureza!) refletindo que seria mau acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das coisas.
 Já nessa noite, D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de Inácio; não chegou a achar nada, porque o tempo do chá era curto e o rapazinho não tirou os olhos da xícara. No dia seguinte pôde observar melhor, e nos outros otimamente. Percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo. D. Severina compreendeu que não havia recear nenhum desacato, e concluiu que o melhor era não dizer nada ao solicitador; poupava-lhe um desgosto, e outro à pobre criança. Já se persuadia bem que ele era criança, e assentou de o tratar tão secamente como até ali, ou ainda mais. E assim fez; Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto.
- Vou-me embora, repetia ele na rua como nos primeiros dias.
 Chegava a casa e não se ia embora. Os braços de D. Severina fechavam-lhe um parêntesis no meio do longo e fastidioso período da vida que levava, e essa oração intercalada trazia uma idéia original e profunda, inventada pelo céu unicamente para ele. Deixava-se estar e ia andando. Afinal, porém, teve de sair, e para nunca mais; eis aqui como e porquê.
 D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, coisa que jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria.
 A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem entender-se. Não estava bem em parte nenhuma. Acordava de noite, pensando em D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que lha não trouxesse à memória. Ao entrar no corredor da casa, voltando do trabalho, sentia sempre algum alvoroço, às vezes grande, quando dava com ela no topo da escada, olhando através das grades de pau da cancela, como tendo acudido a ver quem era.
 Um domingo, - nunca ele esqueceu esse domingo, - estava só no quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d'água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal.
 Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. Era ela mesma, eram os seus mesmos braços.
 É certo, porém, que D. Severina, tanto não podia sair da parede, dado que houvesse ali porta ou rasgão, que estava justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as escadas. Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca; levantando-se, foi pegar na jarra que estava em cima do aparador e deixou-a no mesmo lugar; depois caminhou até à porta, deteve-se e voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se outra vez cinco ou dez minutos. De repente, lembrou-se que Inácio comera pouco ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser até que estivesse muito mal.
 Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou, deu com ele na rede, dormindo, com o braço para fora e o folheto caído no chão. A cabeça inclinava-se um pouco do lado da porta, deixando ver os olhos fechados, os cabelos revoltos e um grande ar de riso e de beatitude.
 D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou. Sonhara de noite com ele; pode ser que ele estivesse sonhando com ela. Desde madrugada que a figura do mocinho andava-lhe diante dos olhos como uma tentação diabólica. Recuou ainda, depois voltou, olhou dois, três, cinco minutos, ou mais. Parece que o sono dava à adolescência de Inácio uma expressão mais acentuada, quase feminina, quase pueril. Uma criança! disse ela a si mesma, naquela língua sem palavras que todos trazemos conosco. E esta idéia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos.
- Uma criança!
E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço caído; mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito mais bonito que acordado, e uma dessas idéias corrigia ou corrompia a outra. De repente estremeceu e recuou assustada: ouvira um ruído ao pé, na saleta do engomado; foi ver, era um gato que deitara uma tigela ao chão. Voltando devagarinho a espiá-lo, viu que dormia profundamente. Tinha o sono duro a criança! O rumor que a abalara tanto, não o fez sequer mudar de posição. E ela continuou a vê-lo dormir, - dormir e talvez sonhar.
Que não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas cálidas, principalmente novas, - ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse. Duas três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca.
Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dali passou à sala da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se escutava algum rumor que lhe dissesse que ele acordara, e só depois de muito tempo é que o medo foi passando. Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crer que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus desejos na idéia de que era uma criança namorada que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia amiga, inclinara-se e beijara-o. Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo que dormia apontou-lhe na alma e deu-lhe um calafrio.
 Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e só acordou para jantar. Sentou-se à mesa lépido. Conquanto achasse D. Severina calada e severa e o solicitador tão ríspido como nos outros dias, nem a rispidez de um, nem a severidade da outra podiam dissipar-lhe a visão graciosa que ainda trazia consigo, ou amortecer-lhe a sensação do beijo. Não reparou que D. Severina tinha um xale que lhe cobria os braços; reparou depois, na segunda-feira, e na terça-feira, também, e até sábado, que foi o dia em que Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar com ele; e não o fez zangado, porque o tratou relativamente bem e ainda lhe disse à saída:
- Quando precisar de mim para alguma coisa, procure-me.
- Sim, senhor. A Sra. D. Severina...
- Está lá para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã ou depois despedir-se dela.
Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão bem! falava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente... Tanto pensou que acabou supondo de sua parte algum olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera, não era outra coisa; e daqui a cara fechada e o xale que cobria os braços tão bonitos... Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana:
- E foi um sonho! um simples sonho!
 
 
Fonte: Contos Consagrados - Machado de Assis - Coleção Prestígio - Ediouro - s/d

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Uma vela para Dario


Dalton Trevisan
"Vinte Contos Menores" - Editora Record – 1979

Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.

Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.

Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.

Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.

A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado á parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.

Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las.

Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.

Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade.

Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.

O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão.

A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto.

Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.

Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.

Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.

 

O tradutor é um transfigurador

Haroldo de Campos
 
Ultimamente o assunto tradução tem estado presente na imprensa diária e variados veículos literários. A técnica da abordagem tem sido praticamente a mesma, como se eventuais problemas é estivessem sendo descobertos agora. Mas para quebrar essa rotina, é que a revista carioca 34 Letras n.º3, março, 1989, ótimo objeto trimestral de cultura destinado a estudiosos da área de ciências humanas em geral e, particularmente, a pessoas interessadas em criação e crítica literária, muito oportunamente propõe uma discussão sobre o assunto. Esse número está dedicado em grande parte à questão da tradução (p.76-159), cujo tema diverge do ponto de vista de alguns dos mais respeitados profissionais da área: Hamlet- a tradução, Millôr Fernandes; Da Tradução à transficcionalidade, Haroldo de Campos (1929 -2001) A difícil vida fácil de tradutor, Paulo Henrique Brito; Broch, traduzido, Jean-Michel Rabaté; Interferência-um problema de tradução, Geir Campos; O Texto e sua sombra (teses sobre a teoria da introdução), Nelson Ascher. Além dos ensaios com uma visão mais poética da questão assinada pelos escritores: Novalis, Ana Cristina César, Octavio Paz, Jorge Luís Borges e Sebastião Uchoa Leite. E para esquentar ainda mais o tema, a Editora Ática lançou em convênio com a Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo, 1990, a coletânea de ensaios Tradução a Ponte Necessária (aspectos e problemas da arte de traduzir) de José Paulo Paes (1926-1998), um dos mais notáveis tradutores em atividade no país, com larga experiência e grande produção, além de renomado ensaísta e poeta. E como não poderia deixar de dar sua contribuição a essa questão, a revista Exu da Fundação Casa de Jorge Amado, numa edição especial belíssima dedicada também à tradução, reúne em seu número 16/17 (jul/out), 1990, colaborações do Brasil e do exterior, e editando-as conjuntamente – traduções, estudos críticos, contos e poesias.
Embora existisse uma antiga polêmica sobre o conceito de tradução como ciência ou arte, com o desenvolvimento do estruturalismo, foi possível levantar sérias dúvidas quanto à possibilidade teórica da tradução. E mais recentemente por John Cunnison Catford (Uma teoria linguística da tradução. São Paulo, Ed. Cultrix, 1980), que considerava a teoria da tradução uma teoria da linguística aplicada, achando muito difícil traçar limites para a possibilidade de tradução, pois o ato de traduzir é uma operação relativamente possível e absolutamente indispensável, necessária. Mas, considera (linguísticos e culturas) como traços relevantes às dificuldades básicas para o tradutor. Para o poeta da linguística Roman Jakobson (Aspectos linguísticos da tradução, in Linguística e Comunicação 1. O signo verbal pode ser traduzido em outros signos da mesma língua, em outra língua, ou em outro sistema de símbolos não – verbais, apesar da rara existência de obstáculos poéticos: a tradução intralingual ou reformulação, tradução interlingual ou tradução propriamente dita e a tradução intersemiótica ou transmutação. Apesar de, quase na sua totalidade, livros de linguística não reservarem qualquer capítulo sobre os problemas da tradução, parece haver por parte destes um desinteresse total, não sabendo que a tradução é de fato uma operação linguística. Até mesmo no índice do (Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem, O. Ducrot e T. Todorov, faz constar à tradução. 2 Entre nós, ainda carece uma bibliografia mesmo que razoável acerca deste assunto.
Escrever sobre tradução é mergulhar numa problemática que não se resume apenas ao ato de traduzir, mas constitui um permanente desafio, tanto para os críticos como para os tradutores. Tradução de acordo com a etimologia latina (traductione) é o ato ou efeito de conduzir além de, transferir, um texto ou dito de uma língua para outra, ou seja, é o processo de converter uma linguagem em outra. A própria palavra tradução é um termo ambíguo, sendo as mais usadas: justalinear (aquela em que o texto de cada linha vai traduzido ao lado, ou na linha imediata), literal (a que é feita ao pé da letra) e livre (a que se atém às palavras do texto original, opondo-se à tradução literal). Tradutor é aquele que torna compreensível àquilo que antes era ininteligível; por isso, o primeiro tradutor foi o hermeneuta, a quem cabia traduzir em linguagem humana a vontade divina, permitia a comunicação em plano vertical, entre Deus e os homens. O tradutor de hoje pode enriquecer o texto por sua própria conta, modernizando violentamente a dicção, criando neologismos, intensificando a trama sonora, enxertando elementos de sua própria realidade cultural, transformando-se, enfim, em parceiro do autor traduzido. A tradução, o novo texto, a recriação alarga o círculo de objetivos do texto precedente, cujo autor não consegue prever todos os efeitos daquilo que escreveu e que pode aparecer numa nova roupagem de outro idioma.
Porque a função do tradutor é estar em perfeitas condições de avaliar a preservação dos efeitos textuais, em outras palavras; ao ler uma tradução, o leitor não pensa de saída no original, que ele geralmente não conhece nem pode entender. Vivemos num mundo em tradução, graças ao progresso tecnológico no campo da comunicação, que viabiliza a troca de informações entre os pontos mais remotos da terra, com rapidez jamais vista. A tradução é uma operação que se realiza nas línguas; um processo de substituição de um texto numa língua por um texto em outra, é uma atividade de grande importância no mundo moderno, não apenas para linguísticas, tradutores (profissionais e amadores) e professores de línguas, mas também para engenheiros eletrônicos e matemáticos. Qualquer tradutor digno deste nome, conhece um certo número de verdades evidentes e incontestáveis quanto à natureza da linguagem humana, que a maior parte dos linguistas, hoje em dia, parece ignorar ou ter esquecido. Cada página a traduzir traz ao tradutor novas provas que o convence de que a confrontação, operada no seu cérebro, dos dois sistemas de formas e de estruturas instrumentais é, afinal, a de dois polissistemas.
O documento mais famoso que se conhece da atividade tradutória na Antiguidade é a Pedra de Rosetta, um fragmento de basalto encontrado em 1799 nas escavações que se faziam numa região próximo ao rio Nilo. Na Pedra, datada do século II a. C., vê-se um mesmo texto grafado de três maneiras diferentes; em hieróglifos da escrita sagrada do antigo Egito, em caracteres da língua escrita popular egípcia da época, e em caracteres gregos. Foi a partir do estudo dessa pedra que Jean- François Champollion começou a decifrar os hieróglifos do Antigo Egito, mas sabe-se que o imperador Sharrukin, da Assíria, três séculos antes da era cristã, já gostava de ter seus feitos divulgados por escrito em todas as línguas que se falavam no seu vasto império. Entre os babilônicos, assírios e hititas existiam organizações de escribas especializados, que escreviam em línguas diversas, sabe-se também que no Antigo Império Egípcio (2778-2160 a. C.) existiu o cargo público de "intérprete- chefe" e que na Ásia Menor circulavam ou existiam glossário bilíngues ou plurilíngues em tabuletas de terracota. A primeira determinação legal de tradução ocorreu no ano 146 em Roma, quando o Senado romano mandou traduzir o tratado de agricultura do cartaginês Magão. No século I antes da era cristã, o romano Cícero refere-se à tradução que ele mesmo fez dos Discursos do grego Demóstenes. Cabe também mencionar a famosa Versão dos Setenta, que teve o texto do Antigo Testamento traduzido do hebraico para o grego por setenta e dois sábios do Egito, por ordem do seu rei Ptolomeu Filadelfo. Durante a Idade Média, a tradução esteve a serviço da catequese religiosa e não faltou quem dissesse que "cristianizar equivale a traduzir". As ideias passaram a ter maiores possibilidades de circulação graças à invenção do prelo por Gutenberg em 1440, quando a imprensa facilitava a reprodução do mesmo texto em muito maior número de cópias.
"Nenhuma ditadura termina no dia em que os ditadores caem, assim como alguma profunda infecção não se cura com a primeira dose de antibiótico, é preciso mais, tem que haver continuidade no tratamento, atenção e persistência". O que está acontecendo com as traduções no país, é mais um exemplo de como detectamos o resíduo das ditaduras após sua extinção oficial, em vários seguimentos sociais, que, pela escala da gravidade, não se mede pela aparência de um outro caso, e sim por seu significado dentro do contexto. Dizem que no Brasil os tradutores via de regra, traduzem mal. Em compensação, também ganham muito mal, e os contratos normalmente não dão aos tradutores, porcentagens nas vendas nem direitos quanto à reedição dos textos. E, nesse sentido, falta muito para o Brasil avançar, reconhecer o trabalho de tradução como um trabalho qualquer, que deve ser remunerado com dignidade. As editoras, por sua vez, alegam ser impossível aumentar a remuneração dos tradutores, pois os gastos com tradução significam cerca de 4% do preço de capa do livro, valor considerado muito alto em relação aos custos de composição, impressão e de papel. Por isso, as condições de mercado não propiciam que se faça uma boa tradução, pois é preciso fazer um trabalho apressado para sobreviver. Um esforço pessoal exaustivo e em geral pouco ou nada compensador, do ponto de vista econômico.
Traduzir é uma arte. O grande tradutor é um artista que não vem sendo reconhecido como tal. O desrespeito é tamanho que raras são as oportunidades que dão ao tradutor para rever o texto traduzido antes de sua composição final, para discutir a revisão. O que geralmente acontece é ele receber o exemplar já impresso, com alterações em diversos trechos, troca de títulos por outro, erros de concordância, corte de períodos inteiros e substituição de palavras de forma inexplicável, etc. Mais de 90% dessas traduções, em sua maioria foram traídas pela armadilha dos editores inescrupulosos. Sem nenhuma dúvida que as condições contratuais da tradução, afetam a qualidade intrínseca do texto, alguns dos tradutores mais atuantes, chegam a entregar ao editor, em média um livro por semana. Para haver uma tradução de boa qualidade, com sensibilidade literária apurada, em primeiro lugar é preciso estabelecer um prazo adequado para a entrega do texto. Segundo, é conscientizar o trabalho do perfeito domínio e conhecimento das nuances dos idiomas fonte e objeto .
De certo modo, hoje, no Brasil, só pode ser tradutor quem não precisa ser tradutor. Até mesmo alguns dos nossos melhores tradutores não estão traduzindo. Mas os erros de tradução, não são privilégio somente de brasileiros, até os santos erram: ao traduzir a Bíblia para o latim, São Gerônimo confundiu-se e fez com que Moisés descesse do Monte Sinai, carregando as Tábuas da Lei, com dois "chifres de luz" na cabeça, - quando na realidade o profeta tinha dois "fachos de luz" a encimá-lo. O grande pintor italiano Michelangelo acreditou no santo e fez a famosa estátua de Moisés com dois chifres. 3 Os desvios que surgem sempre, mesmo nas melhores recriações, realizadas por tradutores excelentes, são motivados pelas diferenças existentes entre as várias línguas entre o autor e o tradutor e pela distinta situação literária, dominante num e noutro campo linguístico. Na tradução cabe ao responsável a importante e por vezes difícil decisão de determinar a convivência ou não de serem conservados tais desvios, pois cada idioma possui suas peculiaridade de construção, as normas que o regem, e que não se aplicam a mais língua nenhuma. É claro que nas traduções em versos os desvios muitas vezes se explicam pelas exigências da métrica e da rima.
Os principais problemas teóricos que envolvem o ato tradutório, tais como: o que acontece quando traduzimos um texto? A que devemos ser fiéis quando realizamos uma tradução? Sobre os pontos de vista teórico e prático, é possível traduzirmos com sucesso textos literários e poéticos?- Está bem claro que traduzir não significa exclusivamente substituir palavras de um idioma por palavras do outro, mas transferir o conteúdo de um texto, decodificando apropriadamente as informações contidas no original, e a sua conversão em código equivalem na língua para qual traduz. Portanto o tradutor terá de dispor do conhecimento suficiente para entender os termos específicos do original e dominar os equivalentes no próprio idioma. Sobre o ofício e a arte de traduzir, disse o poeta/ ensaísta mexicano Octávio Paz que "todo texto é único e é, ao mesmo tempo, a tradução de outro. Nenhum texto é completamente original porque a própria língua, em sua essência, já é uma tradução: em primeiro lugar, do mundo não- verbal e, em segundo, porque todo signo, toda frase é a tradução de outro signo e de outra frase". 4
Em pleno século XX os teóricos e práticos da tradução de todo mundo, continuam a discutir e a divergir, como desde a Antiguidade, sem que se tenha chegado ainda a consenso sobre o assunto. A crescente importância da tradução neste século pode ser observada em toda parte, basta consultarmos o Index Translationen iniciado em 1932, que já em 1970, segundo estatística deste volume, apresentava 41.332 traduções; das quais 5.932 foram realizadas para o alemão, 3.580 para o russo, 2.944 para o espanhol, 2.569 para o inglês, 2.069 para o japonês e 1.918 para o francês. Conforme o Anuário Estatístico do IBGE de 1985, tendo como ano base 1983, no Brasil foram traduzidos 2.317 títulos, num total de vinte milhões e oitenta e dois mil exemplares impressos. Entre nós, os melhores tradutores de poesia e teóricos do assunto, destacam-se os poetas concretistas, Augusto de Campos (De Ulysses a Ulisses, in Panorama do Finnegans Wake. 5; A língua do pó, in O Anticrítico. 6 e Haroldo de Campos (A Poética da Tradução, in A Arte no Horizonte do Provável.7; Da tradução como Criação e como Crítica, in Metelinguagem. 8; Ideograma, Anagrama, Diagrama - uma leitura de Fenolhosa (V- a Prova pela Tradução), in Ideograma – lógica. Poesia. Linguagem. 9. Que ao longo desses quarenta anos de atividade vem preenchendo uma lacuna substancial na formação intelectual brasileira, como uma técnica de alta precisão, produção espantosa e diversificada, traduzida do inglês, francês, italiano, latim, provençal, russo, hebraico, alemão, japonês, espanhol, chinês entre outros. Conservando sempre a matriz Ezra Pound, que adotou o lema confunciano MAKE IT NEW (renovar), para dar nova vida ao passado literário via tradução e através dessas incursões é que os irmãos Campos, dão sua contribuição máxima à moderna poesia, com sua extraordinária liberdade em suas recriações (transcriações).
Por exemplo, confira Traduzir, Trovar, Augusto e Haroldo de Campos. 10 Um trabalho excelente, de perícia profissional, com um estilo reconhecível em português que faz o eco aos originais. Há pessoas corajosas que colocam os textos no original e outros em qualquer idioma, lado a lado e desenvolveram seu próprio método de ginástica para montar as duas plataformas. Porque em qualquer das duas línguas, o tradutor terá que ler com uma espécie de fé paciente. Pois requer dele, uma iniciação a estranhos movimentos físicos e mentais, desenvolvidos por outra cultura, - um compasso uniforme, vagaroso, sem a tensão de prazos estabelecidos. E essa busca cria uma estação da mente fora dos limites temporais, e isso pode levar meses e até anos. Segundo Haroldo de Campos, traduzir poesia há de ser criar-re-criar -, sob pena de esterilização e petrificação, o que é pior do que a alternativa de "trair".



NOTAS


1.                       Lingüística e comunicação, Roman Jakobson. São Paulo, Ed. Cultrix, trad. José Paulo Paes e Izidoro Blikstein, 1974.
2.                       Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem,  Ducrot e T. Todorov. São Paulo, Ed. Perspectiva, trad. Alice Kyoko Miyashiro, J. Guinsburg e Mary Amazonas Leite de Barros, 1977.
3.                       Revista Veja. São Paulo, 20. jul, 1988.
4.                       Traducción: Literatura y Literalidade, Octavio Paz. Barcelona, Jusquets, 1981.
5.                       Panorama do Finnegans Wake, augusto e Haroldo de Campos. São Paulo, Ed. Perspectiva, col. Signos, nº1, 1971.
6.                       O Anticrítico, Augusto de Campos. São Paulo, Companhia das Letras, 1986.
7.                       A Arte no Horizonte do Provável, Haroldo de Campos. São Paulo, Ed. Perspectiva, col. Debates nº16, 2ª ed. 1972.
8.                       Metalinguagem, Haroldo de Campos. São Paulo, Editora Cultrix, 3ª ed. 1976.
9.                       Ideograma-Logica. Poesia. Linguagem, Haroldo de Campos. São Paulo, Ed. Cultrix, 1977.
10.                   Traduzir. Trovar, Augusto de Campos. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1968.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

A presença espanhola

 
Aldo Bizzocchi é doutor em linguística pela USP. 
Autor de Léxico e Ideologia na Europa Ocidental (Annablume)
Para Revista Língua - Março de 2012.
 
Segundo dados da Wikipédia, o português é a quinta língua no mundo em número de falantes (somos mais de 270 milhões), a terceira no hemisfério ocidental e a primeira no hemisfério sul. Diferentemente do chinês, a língua mais falada, que se concentra na China, o português é falado oficialmente em oito países e mais algumas regiões autônomas, como Goa e Macau. Portugal já foi a sede de um dos maiores impérios coloniais da história, e o Brasil já é considerado a sexta maior economia do mundo. Língua pátria de alguns dos mais ilustres autores da literatura mundial, como Camões, Pessoa, Machado, Drummond, Jorge Amado, Saramago e Paulo Coelho, nosso idioma está presente em produtos midiáticos que fazem sucesso mundo afora, como a música popular e as telenovelas brasileiras. Sem falar da projeção do nosso carnaval e futebol. O português é, ainda, língua oficial da União Europeia, do Mercosul e de alguns organismos internacionais.
Atualmente, com a crise do euro e o espantoso crescimento econômico brasileiro, já há na Europa e nos Estados Unidos mais turistas falando português do que espanhol, francês ou italiano. Apesar de tudo isso, manuais de produtos estrangeiros raramente trazem instruções em português, assim como museus e atrações turísticas do exterior quase nunca dispõem de folhetos ou audioguias em nossa língua. Curiosamente, esses locais oferecem material em línguas muito menos difundidas, como holandês, polonês, russo, coreano.
O prêmio Nobel de Literatura já foi concedido a autores dos mais diversos idiomas. Elias Canetti, agraciado em 1981, nasceu na fronteira entre a Bulgária e a Romênia, tinha nacionalidade turca, búlgara, suíça e britânica, era falante nativo do ladino (dialeto espanhol) e escrevia em alemão. Tudo isso sendo judeu e tendo sobrenome italiano! Nada disso o impediu de ter seu talento reconhecido. No entanto, quando, em 1998, José Saramago venceu o Nobel, tornando-se - tardiamente - o primeiro escritor de expressão portuguesa a receber tal prêmio, parte da comunidade internacional reclamou da premiação, e não pela qualidade de sua obra, mas por ter ela sido escrita "numa língua menor".

Razões
Mas por que a última flor do Lácio é também tão desprezada apesar de sua importância? Sua complicada gramática normativa opõe algum entrave à aceitação internacional do idioma. Mas a meu ver o motivo principal não é esse. Trata-se da existência do espanhol. Há uma crença generalizada de que português e castelhano são línguas irmãs, quase gêmeas. E como a comunidade hispano-falante (a segunda maior do mundo) é mais numerosa que a lusófona, acredita-se que, ao fornecer manuais ou folhetos em espanhol, atende-se também aos falantes do português. Ledo engano!
Em primeiro lugar, as duas línguas têm muitas diferenças (estão mais distantes entre si do que o sueco e o norueguês, por exemplo), sobretudo no léxico. Textos em espanhol têm muitos termos opacos para nós, sem falar nos falsos cognatos, palavras de igual grafia mas de significados diversos (como confundir "copo" com "latrina", já que "vaso" significa uma coisa numa língua e outra coisa na outra).
Além disso, as grandes divergências fonéticas tornam o castelhano por vezes incompreensível. De certa forma, o italiano, irmão mais distante do português, chega a ser mais inteligível que o espanhol. É que os falantes desta língua omitem ou enfraquecem muitas consoantes e têm o hábito de falar depressa e aos soquinhos, com muitos chiados e ceceios, sobretudo na variedade europeia.
Por muito tempo o mundo desenvolvido (entenda-se europeus e americanos), pensou que o Brasil falasse espanhol e sua capital fosse Buenos Aires. A presença majoritária de colônias hispânicas na América nos isolou. Embora seja o mais importante país latino-americano, o Brasil é a única nação de língua portuguesa das Américas. Porém, a comunidade hispano-americana, ainda que maior, está fragmentada em muitas nações, nenhuma das quais tem maior projeção mundial.
Ao mesmo tempo, Portugal, no extremo oeste da Europa, com seu território minúsculo e cercado de Espanha por todos os lados (pelo menos os terrestres), também sofreu a concorrência de uma cultura, se não superior, pelo menos mais difundida, com seus Cervantes, El Grecos, Velázquez, Góngoras, Goyas, Picassos, Mirós, Dalís, Casals, Buñuels, Gaudís, Balenciagas, Almodóvares. E de um estado mais poderoso, com sua invencível armada e soberanos multinacionais como Carlos V.

Equívocos
Na verdade, o Brasil e sua cultura só vêm se tornando populares no resto do mundo há pouco mais de uma década. Por isso, muitos estrangeiros já sabem que aqui não se diz muchas gracias nem buenos días, mas seu conhecimento sobre nossa língua não vai muito além disso. É patético ver um estrangeiro esforçando-se por falar português misturando espanholismos e pseudoespanholismos, em grande parte deduzidos da suposta semelhança entre os dois idiomas, como dizer "obra mestra" no lugar de "obra-prima" por equivocada analogia com o espanhol obra maestra.
Além de tudo, vemos pouco engajamento dos governos português e brasileiro em exigir respeito por nossa língua. O ensino de castelhano é obrigatório nas escolas brasileiras, mas o de português não o é na maioria dos países hispânicos. Comerciais produzidos no exterior, alguns falados e escritos em inglês, passam impunemente em nossa televisão, para desespero e desemprego de nossos publicitários.

Exigências
No afã de exportarmos nossos produtos (em tempos de globalização exportar é o que importa), cumprimos as exigências de nossos clientes externos, inclusive vertendo para suas línguas todas as informações respectivas, mas não temos a mesma exigência em relação ao que importamos. Alguns manuais de instruções em português redigidos por chineses são um verdadeiro desacato.
Parece que nosso complexo de vira-latas, de que falava Nelson Rodrigues, nos faz crer que nosso idioma é de fato inferior e que bonito mesmo é falar inglês. (Houve até um presidente brasileiro, de triste memória, que discursou em inglês na ONU para demonstrar sua erudição - e nossa subserviência.) Em resumo, parece que o grande azar do português é ter um vizinho, aqui e na Europa, irmão muito próximo, embora não tão parecido, chamado espanhol. Irmão de maior prestígio, espécie de irmão mais velho que sufoca a emancipação do caçula, nessa família de muitos irmãos chamada latinidade.



Duas línguas irmãs


Juan Arias
para a coluna Opinião do jornal El País 
28 de novembro de 2013
 
 

Este jornal fala, a partir de agora, também o português. Foi o abraço das duas línguas irmãs de um continente dividido, sobretudo, pelo idioma, segundo me dizem alguns intelectuais. Duas línguas prenhas de história e de cultura, berços, ambas, de uma literatura invejável no mundo.
Meio continente da América Latina fala a língua de Cervantes e García Márquez, e o outro meio – como dizia anteontem em uma entrevista a este jornal a presidenta da Academia Brasileira de Letras, Ana Maria Machado – fala o português de Camões e Guimarães Rosa, indicando que o Brasil, mais do que um país, é quase metade do continente.
Deveríamos todos, então, falar espanhol e português? É uma pergunta que se fizeram alguns brasileiros quando foi aprovada aqui, há alguns anos, a lei que obrigava as escolas públicas a oferecerem, aos alunos que desejassem, o ensino do espanhol.
As leis, no entanto, acabam em letra morta se não houver a vontade de cumpri-las por parte do poder e dos cidadãos. E essa vontade depende de mil imponderáveis.
No caso do Brasil, me lembrava Machado – e pude comprová-lo nos 15 anos em que venho informando a partir deste país –, os brasileiros entendem o espanhol muito melhor, por exemplo, do que os espanhóis entendem o português. Por uma simples razão fonética: nossas vogais [em espanhol] são todas abertas, sem nasais, as deles [brasileiros] são mais sinuosas, mais curvilíneas, mais musicais. A expressão de queixa com caráter sexual, por exemplo: “pô” (nem pronunciam inteira) não soará nunca como o espanhol “joder” ou “carajo”.
Eu me refiro ao espanhol da Espanha, porque o que se fala em geral na América Latina de alguma forma se aproxima mais da musicalidade brasileira, embora também seja mais compreensível para eles porque suas vogais são abertas.
Quando me convidam para um programa de televisão, sempre me avisam: “Se preferir falar espanhol, pode falar, nossos ouvintes entendem”, algo que não ocorre ao contrário. Às vezes, os brasileiros têm mais dificuldades para entender o português de Portugal, ou “europeu”.
Há sons dos brasileiros que um espanhol precisa de anos para pronunciar como eles, se é que conseguirão, como “pão”, “coração” ou “paixão”. Um amigo meu me disse um dia: quando você pronunciar bem essas três palavras, poderá dizer que fala “brasileiro”; antes, não.
Ainda não falo, porque nunca me sai redondo como para eles esse eco que deixam no ar ao pronunciar “pão”, “coração” ou “paixão”.
E talvez seja essa diversidade que leva, como vi por experiência própria, muitos falantes do espanhol a desejarem aprender o português, sobretudo o do Brasil, porque dizem que é “muito doce” e porque adoram escutar as letras dos grandes músicos como Chico Buarque, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Maria Bethânia e um etc. sem fim. São sons que arrebatam.
Na primeira vez que cheguei ao Brasil, numa das viagens do papa João Paulo II, acostumado aos sons estridentes dos alto-falantes dos nossos aeroportos espanhóis, fiquei extasiado quando em um dos aeroportos brasileiros (já não me lembro qual) uma voz feminina, como um lamento sensual, avisou: “Próximo destino: Manaus”. Um colega espanhol da comitiva papal, muito castiço, enviado especial da Rádio Nacional da Espanha, me disse: “É que a gente se derrete de satisfação”. E acrescentou: “É que nós falamos de um jeito muito bruto”.
Os brasileiros, no entanto, também gostam de escutar o espanhol. Pedem que você fale com eles, sobretudo quando se trata de poesia, de Lorca ou Neruda, por exemplo. Pode ser que, para nós, a nossa língua pareça dura ao lado desse timbre musical deles, mas eles gostam, a acham sonora, com uma musicalidade diferente, dizem. E quem estudou um pouco de espanhol se anima em seguida a entrar na dança. E ao falar nossa língua encaixam nela graciosamente a musicalidade do português brasileiro.
Estamos falando de duas línguas irmãs porque elas nascem de uma mesma cepa latina. Não falamos do português e do alemão ou do sueco.
Um dos sonhos dos brasileiros de classe média é visitar a Espanha. Muitos sempre me pedem conselhos de itinerários. Voltam sempre fascinados e trazem na memória frases em castelhano, que lhe oferecem como um presente. E soam aveludadas na sua boca. Acontece o mesmo, por exemplo, com os mexicanos e demais países latino-americanos. Com relação aos argentinos, em um dos lugares mais privilegiados pelo turismo brasileiro na América Latina, junto com México, Peru e Chile, os daqui costumam imitar com graça, ao retornarem de Buenos Aires, o seu sotaque portenho.
Tudo isso para dizer que eu, que já amo este país como parte de mim, embora às vezes algumas coisas do seu caráter continuem me irritando, como para eles devem irritar outras tantas minhas ou mais, me sinto feliz de ver que este jornal com vocação global e ibero-americana tenha decidido falar também português e a partir daqui, do Brasil, e com uma redação majoritariamente brasileira.
São esses gestos, mais que as leis, que podem levar ambos, sem percebermos, a sermos bilíngues sem leis que nos obriguem a isso, só com a força da simpatia recíproca que se cria com diálogo, com intercâmbio de cultura, conhecendo-nos melhor, trabalhando juntos, porque, como dizia a acadêmica Ana Maria Machado, desse modo descobriremos que “somos mais parecidos e menos distantes do que supúnhamos”.
Ah, os brasileiros também gostam menos da dor e da tragédia do que nós. São mais inclinados à alegria sensual. É curioso, por exemplo, que a palavra “dolor” em espanhol, “dolore” em italiano, “douleur” em francês, seja em português a mais curta de todas. Reduziram-na, já que não podiam eliminá-la, a uma só sílaba: dor. E até a pronunciam baixinho. “É uma dor”, exclamam diante de algo triste ou uma desgraça, e a sílaba “dor” quase acaba se perdendo no suspiro.
Somos juntos, hispanófonos e lusófonos, uma das maiores populações do mundo. O que nos separa é muito menor do que o que nos une. E além do mais a modernidade está nos eliminando a distância física. Logo atravessaremos o Atlântico e chegaremos do Brasil a Madri ou ao México em menos tempo do que às vezes gastamos engarrafados em um carro, em São Paulo ou no Rio. Os conceitos de tempo e espaço estão mudando. Todo tempo a se aproximarem. Só nós continuaremos distantes e separados falando duas línguas que, como dizia Ana Maria Machado, “quase se entendem”?

domingo, 6 de abril de 2014

O homem de cabeça de papelão

João do Rio

No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social.

O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!

Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.

Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.

Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.

Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.

— Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.

— Mas não quero ser nada disso.

— Então quer ser vagabundo?

— Quero trabalhar.

— Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.

— Eu não acho.

— É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.

Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!

Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:

— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...

O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:

— A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.

— Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?

Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.

No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham explorado.

Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.

— É doido, mas bom.

Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.

— Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...

— É da tua má cabeça, meu filho.

— Qual?

— A tua cabeça não regula.

— Quem sabe?

Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.

— Só caso se o senhor tomar juízo.

— Mas que chama você juízo?

— Ser como os mais.

— Então você gosta de mim?

— E por isso é que só caso depois.

Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.

Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.

— Traz algum relógio?

— Trago a minha cabeça.

— Ah! Desarranjada?

— Dizem-no, pelo menos.

— Em todo o caso, há tempo?

— Desde que nasci.

— Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem...

Antenor atalhou:

— E o senhor fica com a minha cabeça?

— Se a deixar.

— Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...

— Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.

— Regula?

— É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.

Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.

Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.

Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.

— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!

Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.

— Há tempos deixei aqui uma cabeça.

— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.

— Ah! fez Antenor.

— Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim...

— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.

— Mas a minha cabeça?

— Vou buscá-la.

Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.

— Consertou-a?

— Não.

— Então, desarranjo grande?

O homem recuou.

— Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.

Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.

— Faça o obséquio de embrulhá-la.

— Não a coloca?

— Não.

— V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.

Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.

— Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.

— Qual! V.EX. terá a primeira cabeça.

Antenor ficou seco.

— Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.

E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.

Narrativa de Maria Luiza Mendonça