segunda-feira, 30 de abril de 2018

Canteiros de Saturno

“O pensamento fez Isadora sorrir. Muito pomposo. Uma expressão tão retórica e abstrata que nem parecia coisa saída da sua cabeça. Ridículo alguém usar essas palavras, mesmo para pensar. Mas também, agora que prestava mais atenção, via que a escolha delas fora reveladora. Chamava a atenção para o aspecto compulsivo, o lado quase maníaco do comportamento de Tuca quando ficava daquele jeito, chamando o nome dela toda hora para nada. Ou para perguntar pelas chaves do carro que estavam na mão dele, pelas meias que estavam na gaveta, pelo jornal que estava em cima da mesa, pela toalha que estava atrás da porta do banheiro, por tudo o que estava no lugar de sempre, meu Deus. Mas, principalmente, e era disso que Isadora de repente se dava conta, com um meio-sorriso que não deixava de revelar laivos de ternura - por si e pelo marido -, aquela expressão meio ridícula que lhe viera à mente funcionava como um lapso e trazia o aspecto fundamental de sua irritação. Crônica. Cronos. O velho deus grego. O Saturno dos romanos. O senhor do tempo. Tempo, tempo, tempo. Um senhor tão avaro. Sempre traindo, subtraindo. Diminuindo cada miúdo minuto. E a consciência disso também a contaminava de avareza fazendo-a relutar em dividir, compartilhar sua maior preciosidade.”


(“Canteiros de Saturno” Ana Maria Machado - Sexta e atual, ocupante da cadeira número 1 da Academia Brasileira de Letras)



terça-feira, 20 de março de 2018

Me encanta volar

Ya escondí un amor por miedo de perderlo. Ya perdí un amor por esconderlo. Ya me aseguré en las manos de alguien por miedo. Ya he sentido tanto miedo, hasta el ...punto de no sentir mis manos. Ya expulsé a personas que amaba de mi vida, ya me arrepentí por eso. Ya pasé noches llorando hasta quedarme dormida. Ya me fui a dormir tan feliz, hasta el punto de no poder cerrar los ojos. Ya creí en amores perfectos, ya descubrí que ellos no existen. Ya amé a personas que me decepcionaron, ya decepcioné a personas que me amaron.
Ya pasé horas frente al espejo tratando de descubrir quién soy. Ya tuve tanta certeza de mí, hasta el punto de querer desaparecer. Ya mentí y me arrepentí después. Ya dije la verdad y también me arrepentí. Ya fingí no dar importancia a las personas que amaba, para más tarde llorar en silencio en un rincón. Ya sonreí llorando lágrimas de tristeza, ya lloré de tanto reír. Ya creí en personas que no valían la pena, ya dejé de creer en las que realmente valían. Ya tuve ataques de risa cuando no debía. Ya rompí platos, vasos y jarrones, de rabia. Ya extrañé mucho a alguien, pero nunca se lo dije.
Ya grité cuando debía callar, ya callé cuando debía gritar. Muchas veces dejé de decir lo que pienso para agradar a unos, otras veces hablé lo que no pensaba para molestar a otros. Ya fingí ser lo que no soy para agradar a unos, ya fingí ser lo que no soy para desagradar a otros. Ya conté chistes y más chistes sin gracia, sólo para ver a un amigo feliz. Ya inventé historias con finales felices para dar esperanza a quien la necesitaba. Ya soñé de más, hasta el punto de confundir la realidad. Ya tuve miedo de lo oscuro, hoy en lo oscuro me encuentro, me agacho, me quedo ahí.
Ya me caí muchas veces pensando que no me levantaría, ya me levanté muchas veces pensando que no me caería más.Ya llamé a quien no quería sólo para no llamar a quien realmente quería. Ya corrí detrás de un carro, por llevarse lejos a quien amaba. Ya he llamado a mi madre en el medio de la noche, huyendo de una pesadilla. Pero ella no apareció y fue una pesadilla peor todavía. Ya llamé a personas cercanas de "amigos" y descubrí que no lo eran... a algunas personas nunca necesité llamarlas de ninguna manera y siempre fueron y serán especiales para mí...
No me den fórmulas ciertas, porque no espero acertar siempre. No me muestren lo que esperan de mí porque voy a seguir mi corazón! No me hagan ser lo que no soy, no me inviten a ser igual, porque sinceramente soy diferente! No sé amar por la mitad, no sé vivir de mentira, no sé volar con los pies en la tierra. Soy siempre yo misma, pero con seguridad no seré la misma para siempre!
Me gustan los venenos más lentos, las bebidas más amargas, las drogas más potentes, las ideas más insanas, los pensamientos más complejos, los sentimientos más fuertes. Tengo un apetito voraz y los delirios más locos. Pueden hasta empujarme de un risco y yo voy a decir: "Qué más da? Me encanta volar!"
Clarice Lispector

terça-feira, 13 de março de 2018

No caminho de Swann


“Durante muito tempo, deitava-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: ‘Vou dormir’. E meia hora depois, a ideia de que já era tempo de conciliar o sono me despertava: queria deixar o livro que julgava ainda ter nas mãos e assoprar a vela; dormindo, não havia deixado de refletir sobre o que acabara de ler, porém tais reflexões haviam tomado um aspecto um tanto singular; parecia-me que era de mim mesmo que o livro falava: uma igreja, um quarteto, a rivalidade de Francisco I e Carlos V. Essa crença sobrevivia por alguns segundo ao meu despertar, não ofendia a razão, mas pesavam como escamas sobre os olhos, impedindo-os de perceber que a vela já não estava acesa. Depois principiava a me parecer ininteligível, como, após a metempsicose, as ideias de uma existência anterior; o assunto do livro se deligava de mim eu ficava livre para me adaptar ou não a ele; logo recobrava a vista e me surpreendia bastante por estar rodeado de uma obscuridade, suave e repousante para os olhos, porém ainda mais talvez para o espírito, ao qual surgia como uma coisa sem causa, incompreensível, como algo verdadeiramente obscuro (...)”

 

(“No caminho de Swann” Marcel Proust)


domingo, 11 de março de 2018

As meninas


“ ‘O último véu’ escrevia Lião, ela fica sublime quando escreve, começou o romance dizendo que em dezembro a cidade cheira a pêssego. Imagine. Dezembro é tempo de pêssego, está certo, às vezes a gente encontra as carroças de frutas com cheiro de pomar em redor mas concluir daí que a cidade inteira fica perfumada já é sublimar demais. Dedicou a história a Guevara com um pensamento importantíssimo sobre a vida e a morte, tudo em latim. Imagina se entra latim no esquema guevariano. Ou entra? E se ele gostava de latim. Eu não gosto? Nas horas nobres deitava no chão, cruzava as mãos debaixo da cabeça e ficava olhando as nuvens e latinando, a morte combina muito com latim, não tem coisa que combine tanto com o latim como a morte. Mas aceitar que a cidade cheira pêssego, exorbita.”
("As meninas" Lygia Fagundes Telles)


terça-feira, 6 de março de 2018

Os segredos da obra "Cem Anos de Solidão", de Gabriel García Marquez

Cidade do México — Foi numa terça-feira de 1965. Gabriel García Márquez tinha acabado de voltar de um fim de semana em Acapulco (México) com sua mulher e seus dois filhos quando, fulminado por um “cataclismo da alma”, sentou-se diante da máquina de escrever e, como ele mesmo se recordaria anos mais tarde, não se levantou até o início de 1967. Naqueles 18 meses, todos os dias, das nove da manhã às três da tarde, o escritor colombiano gestou Cem anos de solidão.
Muito já foi escrito sobre o ambiente mexicano em que nasceu sua obra máxima, sobre sua obsessão criativa, suas dificuldades econômicas, o apoio constante dos amigos. Mas muito pouco é sabido sobre a construção de Cem anos de solidão. As chaves de sua formação material, a engenharia sobre a qual o escritor edificou o universo de Macondo, continuam entre sombras. E esse mistério não foi casual. Quando recebeu o primeiro exemplar impresso, em junho de 1967, o próprio autor rasgou o original para que “ninguém pudesse descobrir os truques ou a carpintaria secreta”. Pouquíssimos documentos se salvaram daquela destruição histórica. Um deles, possivelmente o mais importante, foi a primeira cópia das provas de impressão. Sobre elas, García Márquez anotou de seu próprio punho 1.026 correções, deixando à mostra modificações e inflexões de enorme interesse.
Esses papéis, aos quais o El País teve acesso, seguiram uma trajetória acidentada. O escritor os deu de presente ao cineasta exilado Luiz Alcoriza e sua esposa, Janet. Depois da morte dos dois, foram postos em leilão duas vezes, sem encontrar comprador. Agora, esquecidos novamente, procuram uma instituição que os receba. “Prefiro que estejam em uma biblioteca ou um museu que comigo”, diz o mexicano Héctor Delgado, herdeiro dos Alcoriza.
As provas de impressão, da editora Sudamericana, somam 181 folhas duplas, numeradas à mão, com anotações do autor feitas com caneta esferográfica ou caneta marca-texto. Um olhar sobre essas anotações revela as minúcias artísticas do trabalho de García Márquez. Nelas, o autor assinala os inícios de capítulo, reordena parágrafos, suprime e acrescenta frases, substitui ou corrige mais de 150 palavras e, em muitas ocasiões, chama a atenção para erros. Nesse exercício fica evidente a exigência exaustiva do autor consigo mesmo. As modificações não visam apenas purificar o texto ou aclarar a profusão de nomes dos Buendía, mas também aprofundam seus complexos jogos de linguagem. Às vezes tratam-se de sutilezas: de “amedrontar” passa-se para “intimidar”, de “obstruir”, para “cegar”, ou de “completar” para “complementar”. Mas em outras a mão do escritor vai muito mais longe: as borboletas de tornam “amarelas”, as sanguessugas são arrancadas “queimando-as” com brasas, o troglodita é convertido em um “tosco”, as crianças andam como “sorumbáticas”, a Ópera Magna se transforma em “alquimia”, um São José de gesso descobre um interior “abarrotado de moedas de ouro” e a descarga do Mauser “desbarata”, em vez de “desarticular”, um crânio.
Alguns personagens ganham nuances novas com as observações adicionais. Amaranta, por exemplo, “finge sensação de desgosto” quando ouve falar em casamento, enquanto Aureliano vê sua “antiga piedade” transformar-se em “animadversão virulenta”. São alterações constantes. Uma chuva fina de melhorias que, sem gerar mudanças de fundo nem reviravoltas do argumento, descobrem a dimensão microscópica e tenaz de um texto de cuja grandeza o autor tinha consciência.
Possivelmente por isso, García Márquez nunca devolveu as provas de impressão à editora, mas enviou as correções à parte. E, longe de destruir o documento, como teria sido de se esperar, o converteu em um monumento à amizade: o deu de presente e dedicou ao diretor de cinema Luis Alcoriza e sua esposa, a atriz austríaca Janet Riesenfeld: “Para Luiz e Janet, uma dedicatória repetida, mas que é a única verdadeira: do amigo que mais os ama neste mundo. Gabo. 1967.”
Radicado no México e muito próxima a Luis Buñuel, o casal fazia parte do círculo íntimo do escritor colombiano, aquele que o tinha apoiado nas épocas mais negras e com quem, nos bons tempos, ele tinha festejado a alegria de viver. O próprio autor o explicou anos mais tarde em um artigo no El País: “Quando a editora me mandou a primeira cópia das provas de impressão, eu as levei já corrigidas a uma festa na casa dos Alcoriza, sobretudo para matar a curiosidade insaciável do convidado de honra, dom Luis Buñuel, que teceu todo tipo de especulações magistrais sobre a arte de corrigir, não para melhorar, mas para esconder. Vi Alcoriza tão fascinado com a conversa que tomei a boa decisão de lhe dedicar as provas.”
O casal guardou as páginas como um objeto sagrado. Dezoito anos mais tarde, quando Cem anos de solidão já era um totem, García Márquez voltou a encontrar as provas na casa dos Alcoriza: “Janet as tirou do baú e as exibiu na sala, até que lhes disseram, como brincadeira, que com isso eles podiam deixar de ser pobres. Alcoriza então fez uma cena muito sua, golpeando-se no peito com os dois punhos e gritando com seu vozeirão bem empostado e sua determinação carpetovetônica: ‘Pois eu prefiro morrer a vender essa joia dedicada por um amigo’.” García Márquez respondeu escrevendo debaixo da dedicatória, com a mesma caneta que da primeira vez: “Confirmado. Gabo. 1985.”
Luiz Alcoriza, o exilado, morreu em 1992 em Cuernavaca. Sua esposa faleceu seis anos depois. As provas de impressão ficaram com seu herdeiro, o engenheiro e produtor Héctor Delgado, o homem que cuidou deles em seus últimos dias. Em 2001, com a concordância do Prêmio Nobel, as provas foram colocadas em leilão em Barcelona por um milhão de dólares (três milhões de reais), sem encontrar comprador. Um ano depois, tampouco foi encontrado comprador com a Christie’s. Agora, um ano após a morte de García Márquez (2015), o herdeiro, que está com 73 anos, procura quem queira adquirir as provas. A Universidade do Texas, que comprou o arquivo do escritor, se interessou, mas pouco mais que isso. Quase meio século após sua gestação, um dos poucos documentos que se salvaram da gênese de Cem anos de solidão continua a buscar um dono.


fonte: Revista Prosa e Verso




Me alquilo para soñar


"La había conocido treinta y cuatro años antes en Viena, comiendo salchichas con papas hervidas y bebiendo cerveza de barril en una taberna de estudiantes latinos. (…)

Me pareció que era la única austríaca en el largo mesón de madera, por el castellano primario que hablaba sin respirar con un acento de quincallería. Pero no, había nacido en Colombia y se había ido a Austria entre las dos guerras, casi niña, a estudiar música y canto. En aquel momento andaba por los treinta años mal llevados, pues nunca debió ser bella y había empezado a envejecer antes de tiempo. Pero en cambio era un ser humano encantador. (…)

Nunca dijo su verdadero nombre, pues siempre la conocimos con el trabalenguas germánico que le inventaron los estudiantes latinos de Viena: Frau Frida. Apenas me la habían presentado cuando incurrí en la impertinencia feliz de preguntarle cómo había hecho para implantarse de tal modo en aquel mundo tan distante y distinto de sus riscos de vientos del Quindío, y ella me contestó con un golpe:

—Me alquilo para soñar.

En realidad, era su único oficio. Había sido la tercera de los once hijos de un próspero tendero del antiguo Caldas, y desde que aprendió a hablar instauró en la casa la buena costumbre de contar los sueños en ayunas, que es la hora en que se conservan más puras sus virtudes premonitorias. A los siete años soñó que uno de sus hermanos era arrastrado por un torrente. La madre, por pura superstición religiosa, le prohibió al niño lo que más te gustaba, que era bañarse en la quebrada. Pero Frau Frida tenía ya un sistema propio de vaticinios.

—Lo que ese sueño significa —dijo— no es que se vaya a ahogar, sino que no debe comer dulces (…)"

("Me alquilo para soñar". Doce cuentos peregrinos - Gabriel García Márquez)


segunda-feira, 5 de março de 2018

La forma del agua

En la ambientación de la Guerra Fría de 1962 se sitúa La forma del agua, obra fílmica del cineasta mexicano Guillermo del Toro, la cual lo ha llevado a conquistar los más importantes galardones de la industria cinematográfica y  a competir en 13 categorías de los Premios Oscar, mismos que se llevarán a cabo el próximo 4 de marzo.
En el departamento de limpieza de un laboratorio militar de Baltimore, EE. UU., trabaja Elisa —Sally Hawkins—, una mujer muda, mágica, tan cotidiana como etérea en sus actos. Acepta su vida y comparte la misma con su compañera de trabajo, Zelda —Octavia Spencer—, quien siempre tiene quejas de su marido, y Giles —Richard Jenkins —, su vecino, obsesionado con recuperar su empleo.
Los personajes están construidos para ser vulnerables frente a la sociedad de los años 60. Sin embargo, culminan al encontrarse entre sí, en especial cuando «La princesa sin voz» se enamora del hombre anfibio —Doug Jones—, quien es recluido en un laboratorio gubernamental secreto y su destino es ser una victima del gobierno y funcionarios.
La tragedia y el terror es Strickland —Michael Shannon—, conservador, religioso, temperamental, con miedo al fracaso y acosador; una perfecta figura estadounidense que abusa del poder. Él está al frente de la protección del proyecto que mantiene al anfibio en el laboratorio de alta seguridad, circunstancia que lo lleva a convertirse en «el monstruo que alguna vez quiso destruirlo todo».
En cada secuencia del largometraje se encuentra el mundo —sello— de Guillermo del Toro, mismo que ha desarrollado a través de sus cintas en el transcurso de su carrera como cineasta, tal es el caso de El espinazo del diablo o El laberinto del fauno, discursos que partían de lo infantil y fantástico. En esta ocasión el director y escritor se aventura una vez más con una historia  que enaltece al marginado y la presenta por medio de una fabula que representa los matices de las emociones.
Del Toro atrapa al espectador con la conexión de «las relaciones humanas y el amor», la unión de los indefensos frente a circunstancias poco convencionales que los lleva a huir de la fuerza antagónica. Situación que hace del filme una obra humana, alentadora y excelsa de espíritu.
La forma del agua va más allá de las palabras, de lo evidente, rompe con los limites de la realidad y encuadra lo sustancial de una sociedad, situación que confronta al público para ser parte de una historia de romance o una critica social. Termina con la ficción y recae en la poesía del amor.

«Pero cuando pienso en ella, en Elisa todo lo que viene a mi mente es un poema. Hecho con solo unas pocas palabras verdaderas… Susurrado por alguien enamorado, hace cientos de años…
“Incapaz de percibir tu forma, te encuentro a mi alrededor. Tu presencia llena mis ojos con tu amor, humilla mi corazón, porque estás en todas partes “.»





fonte: http://algarabia.com/desde-el-palco/la-forma-del-agua/




domingo, 4 de março de 2018

Vestígios do dia


“(...) E assim começamos a voltar para as casinhas. Enquanto seguia, senti que tinha ficado muito tarde e que meu acompanhante estava ansioso para dormir. Passamos longos minutos andando em volta das casinhas de novo, ele então nos conduziu até a praça da aldeia. Na verdade era tão pequena e sem graça que nem merecia ser chamada de praça; era pouco mais que um retalho de verde ao lado de um poste de luz solitário. Pouco visíveis ao lado da poça de luz projetada pelo poste, havia umas lojas, todas fechadas para a noite. O silêncio era completo, nada se mexia. Uma leve neblina pairava acima do chão.”

(“Vestígios do dia”. Kazuo Ishiguro - Prêmio Nobel de Literatura de 2017)


quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Llorar lágrimas de cocodrilo

Es un dicho arraigado en el folclor de diversas culturas alrededor del mundo que se aplica a quienes manifiestan un comportamiento hipócrita
 o no lloran de corazón.
La conseja se inspiró en la creencia generalizada de que el cocodrilo es un timador consumado, ya que, para despertar la compasión de los oyentes, animales u hombres, y atraerlos a sus dominios para devorarlos, finge 
el lastimoso llanto de un ser desvalido. Memorable es la sentencia que William Shakespeare expresa acerca de la falsa aflicción cocodriliana cuando Otelo, perturbado por los celos y los comentarios de su mujer Desdémona, le refiere: «¡Oh, diablesa, diablesa! Si la tierra pudiera fecundarse con lágrimas de mujer, cada gota que viertes se convertiría en un cocodrilo. ¡Fuera de mi vista!».
Por curioso que resulte, es verdad que tanto el lagrimeo como el gemir son condiciones del comportamiento cocodriliano, mas no como resultado de expresar viciosos sentimientos humanos, sino como parte de estrategias biológicas que le han valido la permanencia sobre la faz del planeta por cerca de 350 millones de años.
Por mucho tiempo se pensó que el cocodrilo llora para engañar a una potencial presa o, peor aún, después de zampársela. Pero el reptil no es ni hipócrita ni compasivo 
y, por consiguiente, no derrama lágrimas a causa de estas congojas. Lo que ocurre es que tiene un aparato potabilizador: sus riñones a menudo no pueden liberarse de todos los excedentes de sales que recibe el organismo y, entonces, acuden en su ayuda unas glándulas que tienen en los ojos, llamadas harderianas, a través de las cuales expulsa las sales, diluidas en agua, como si de lágrimas se tratase. También sus glándulas lagrimales producen un fluido, muy similar a nuestras lágrimas, que le ayuda a lubricar sus ojos para mantenerlos limpios y libres de bacterias.
Además, los cocodrilos sobresalen de entre los reptiles por
 su gran capacidad de vocalización. Los sonidos que emiten estos saurios prehistóricos varían desde las cavernosas voces que los machos emplean para cortejar a las hembras durante la temporada de apareamiento, hasta los agudos «llamados» de auxilio con que los recién nacidos avisan a la madre que acaban de salir del cascarón o que se encuentran bajo amenaza.
Posiblemente estas voces cocodrílicas fueron interpretadas
 en el pasado como lastimosos gemidos de engaño porque, desde la insidiosa perspectiva humana, solamente la hipocresía puede expelerse del interior de un depredador consumado cuyo único propósito en la vida es saciar su permanente sed de sangre y carne.
No cabe duda que en la construcción de este singular proverbio, interviene más el mito que la realidad. La mitificación que los humanos han hecho de los reptiles o de su comportamiento, se resume perfectamente en las palabras que Herbert Wendt utilizó para explicar por qué los hechos reales de la naturaleza se ocultan tras el velo de sucesos fabulosos contenidos en proverbios, refranes, apotegmas, mitos y leyendas: en las personas de todos los tiempos y todas las culturas, invariablemente «su fantasía funcionaba mejor que su vista —y hasta que su oído— […]»


Texto tomado de Algarabía 71








quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Um céu todo estrela



então se fez fonte
o que só era toque.
 
um céu todo estrela
no encontro dos olhos,
 
um fulgor que enlaça
a calmaria da febre
 
onde o tempo se despe
 
e a carne clama um ato
ainda sem nome
 
***
 
procura-se o desassossego
das horas inquietas e úmidas,
a violada canção sagrada
a arder em desertos diários.
 
procura-se o incerto,
a secura ilhada do silêncio,
o tédio das cidades fantasmas,
os caminhos sem saídas,
a íntima falta
que a memória não dissipa.
 
procura-se a mina – os passos
correm o campo, descalços:
a explosão única e precisa,
a limítrofe errância  
entre o plano e o precipício.
 
procura-se a voraz vertigem,
o sagrado impregnado do profano,
a humana redenção à vida.
 
procura-se o maior abismo
escavado no coração da terra,
do céu, no peito do aflito,
 
o fogo mais intenso e quase extinto,
o manancial do delírio,
a hora em que deflora a flor
o inseto e tudo é lindo.
 
procura-se a loucura, o delíquio:
tudo aquilo a que o amor se lança
fingindo não temer o risco
 
***
 
ubuntu,
meu coração desafia
não ser um.
 
juntos, compartir o fruto.
nem mesmo as mãos
são só duas, quando estendidas
ao futuro.
 
bem mais em mim que o dobro
em tudo, revoluz, vislumbro o todo
e pó, que sou, solto pelo mundo.
 
seguem as dunas
e não duram eternas ao vento.
à margem do mar, marejado olhar suspenso,
aconchega a ilusão de um mundo tão pequeno;
até correr, pés, utopia, o espaço incalculável
do universo, quando esquecemos o tempo:
 
cemitério indesvendável do nada 
 
***
 
canto,
mesmo que o canto
não compreenda
os ossos todos dos ecos,
 
nem saiba
o sibilino mistério do assombro
de se evocar, em poucas palavras,
o mesmo e o novo,
 
como a água evoca a água
o ar o ar a terra a terra
o fogo o fogo a mulher a vida.
 
gesto o canto mesmo quando
pareço silêncio

***
como se a casa fosse
de sua alma erigida,
sobre a forma que trouxe
à luz a sua própria vida,
 
é nessa casa que habita
meu ser que se recria:
 
sobre a forma que trago,
de minha alma ser a casa
onde nosso amor cultiva
uma troca de moradas,
 
que é a mesma casa,
a vida
 
***
agora o pouco
é tudo
o que nos resta.
 
agora é tudo.
 
é muito
pedir pouco.
 
agora resta
a vida e seus outros mistérios,
 
sua presença constante
e a fuga sempre certa
do tempo.
 
agora tudo 
é o que nos resta
 
(“Um céu todo estrela” - Alex Dias)








Alex Dias é poeta, ator e gestor cultural. Autor dos livros de poesia Lírica Abissal, lançado pela editora Urutau (2016) e Um céu todo estrela, lançado pela editora Patuá (2017), é Coordenador de Programação do Sesc Birigui e mestrando em Teorias e Crítica da Poesia, pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UNESP de Araraquara, com a pesquisa: Construção e utopia na poesia de invenção. Tem pós-graduação em “Gestão Cultural: Cultura, Desenvolvimento e Mercado” (2016). Possui graduação em Ciências da Informação e da Documentação e Biblioteconomia pela USP de Ribeirão Preto (2006). Fundou e dirige a empresa Osnáuticos – de Arte, Cultura e Educação – onde desenvolve projetos que englobam poesia, literatura, cinema, música e artes cênicas e visuais. Também fundou e coordena o "Poéticas – Laboratório de pesquisa e Criação Literária e Poética" e o projeto "Bagagem... Poesia!", voltado à mediação de leituras. Fez Magistério (2002) em São José do Rio Preto.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Quarta-Feira de Cinzas


“Naquele dia, a cidade ainda dormia ou ia se levantando lentamente. Apesar de São Paulo se vangloriar de ser o maior centro industrial da América Latina, como anunciavam seus vermelhos bondes ‘camarão’, o silêncio e a modorra se explicavam: não se tratava de uma quarta-feira qualquer, e sim de uma Quarta-Feira de Cinzas, após três dias de carnaval.

Mas nem tudo estava parado. Os lixeiros percorriam as ruas, recolhendo os restos da folia no centro da cidade. Cacos de vidro de lança-perfumes, serpentinas emaranhadas, garrafas de cerveja, iam sendo lançados nos caminhões de lixo, embora fosse difícil apagar todos os vestígios de uma festa que introduzira uma cunha brejeira na marcha cotidiana da cidade sisuda.

Dentre os vestígios, os confetes coloridos teimaram em ficar grudados ao asfalto, resistindo às vassouras dos lixeiros até que fossem arrastados pelas chuvas fortes de verão.”

(“O Crime do Restaurante Chinês” - Boris Fausto)


terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

“A cadela do fascismo continua no cio”


… Assim falava Bertoldt Brecht em sua célebre frase. Todos sabemos que os tempos de hoje são tempos favoráveis às criaturas sombrias. O grande cineasta George A. Romero, pai dos filmes de zumbis, morreu há pouco tempo, mas nos deixou de herança esta simbologia dos mortos-vivos e vivos-mortos. O que retorna do túmulo permanece vivo, mas agora é vivo-morto. A cinematografia recente vem trazendo nas suas representações os efeitos drásticos de se viver numa terra arrasada por zumbis. Estas duas imagens ilustram o retorno do ódio neste período recursivo da história, do ódio que mora no coração dos homens e que retorna como super bactéria, se alastrando pelo ressentimento cíclico ou por uma nova forma vil e gratuita de contaminação via redes sociais.

No Brasil, estamos vivendo tempos de terra arrasada, tempos de exceção, tempos de perda da nossa democracia – tão jovem – junto à plena perda de direitos duramente conquistados por anos de luta e desassossego dos oprimidos, dos que estavam e ainda estão nos movimentos sociais, nos movimentos feministas e no feminismo negro, nos movimentos negros, quilombolas, indígenas, LGBTs.

Mas, para lembrar um filme bem brasileiro, é “ódiquê”? É o ódio ao povo, ódio ao negro, mas principalmente ódio à negra – que chegou ao ensino superior, à pós-graduação, ao Miss Brasil. É ódio aos nordestinos e mais ódio às nordestinas com suas “caras de empregadinhas”. O ódio às negras e nordestinas pobres que recebem o Bolsa Família e se recusam a voltar para as cozinhas sofisticadas dos neocolonialistas, que se recusam a trabalhar sem direitos nas novas senzalas.

O ódio da classe média-medíocre é o ódio às políticas públicas, às universidades que, na visão distorcida dos que odeiam, criaram cotas que facilitaram a entrada dos pobres, negros, nordestinos, a confluência de todas as margens para um lugar não destinado a elas: a mobilidade social. É o ódio tacanho, torpe, que mata e violenta todos os dias – os homossexuais, as mulheres, a juventude negra, as crianças pobres – e que vai num crescendo se formando enquanto avalanche e genocídio.

Quantas pessoas já foram assassinadas no Brasil em 2017? Quantas delas eram negras? E no mundo? Quantas eram imigrantes? Quantas eram mulheres? Quantas eram crianças? Há uma relação muito estreita entre neocapitalismo, racismo, xenofobia e a negação dos excluídos. Declarar guerra aos pobres e aos indesejáveis é o tipo de absurdo que se pauta nas mesmas justificativas sempre utilizadas pelas classes dominantes para punir os considerados fracos e elimináveis: prender, vigiar, negar a existência. E se nada disso der certo – caçá-los com cães, matar e tirar da vista. Nas palavras de Foucault, no clássico Vigiar e Punir:

“Apresentá-los como bem próximos, presentes em toda parte e em toda parte temíveis. É a função do noticiário policial que invade parte da imprensa e começa a ter seus próprios jornais. A notícia policial, por sua redundância cotidiana, torna aceitável o conjunto dos controles judiciários e policiais que vigiam a sociedade.”

É preciso sempre lembrar que esse discurso mata. Dizer no programa de televisão que “bandido bom é bandido morto” mata. Esta semente diária do ódio que nasceu da injustiça social, assim como o desejo de massacre contínuo, a permanente ideia de eliminação do outro, todos esses elementos de ódio vão se tornando parte do nosso cotidiano e, como bem diz Foucault, vão tornando o discurso palatável, aceitável. Os elimináveis são apresentados aqui como parte temível. Eliminar faz parte do jogo que migra do discurso para a banalização da ação. A julgar pelo que vejo neste jogo do fascismo, logo avançaremos uma casa e chegaremos ao “pobre bom é pobre morto”.

Mas de quantos mortos precisamos para fazer uma guerra?

Intolerância. Ódio. Falta de empatia. Fundamentalismo religioso. Homofobia. Machismo e Feminicídio. Radicalismo conservador. Há muito para se refletir sobre esses atos de violência e barbárie. As práticas discursivas da atualidade e o desejo paradoxal de empatia em tempos individualistas, de completa indiferença, além da alienação do outro nos torna testemunhas do estrangulamento do humanismo em mídias públicas.

Vivemos em tempos de cyber-sociedade. Quando algo da natureza do ódio estrutural acontece, como vírus em termos de rapidez e descarte, vai se tornando difícil encontrar, desenvolver qualquer código de compreensão da alteridade. Não falo em ética, algo mais profundo na escala do conhecimento. Falo de discernimento e compreensão, porque é o mínimo que deveria emergir dessa esfera mais à derme do humano. Também não falo em humanismo, outra demanda importante, mas ainda vista pelo conceitual.

Quero falar da compreensão mínima do outro que está na base primeira do viver-com, do conviver. Compreensão como ação cotidiana, a da rotina mais usual entre os seres humanos. A compreensão da palavra, do gesto, da pessoa. Penso nessas relações líquidas, frágeis, instantâneas das novas sociabilidades que giram nas mídias sociais, e vejo o desrespeito total ao que é diferente, linchamentos virtuais e o ódio disseminado através de mensagens viralizadas que só causam mais dor e mais violência. O ódio e o ressentimento sempre existiram, mas a dinâmica das redes sociais ligou os pontos dos extremos, amplificou, tirou do armário os que ainda tinham certo constrangimento de expor o machismo, o fascismo, o racismo, a homofobia, a transfobia, a xenofobia etc.

Culpabilizar o outro por seu isolamento cultural ou social, culpabilizar pela desterritorialização, migração, imigração, exílio é o estopim do que há de pior nas ações de ódio. Quando os fascistas das manifestações se unem aos pseudomoderados do discurso, aqueles que odeiam estruturalmente deixam suas casas e constroem com as próprias mãos novos guetos, outros campos de exclusão e extermínio, outras fronteiras.

Com quantos ódios fazemos uma guerra? Com quantas guerras alimentaremos tanto ódio?
Patricia de Cassia Pereira Porto
Mestre em Educação no Campo de Confluência dos Estudos do Cotidiano e da Educação Popular (ECEP/2004). Doutora em Políticas Públicas, Movimentos Instituintes e Educação (PPMIE/2009). Professora Universitária. Coordenadora de Projetos Educacionais. Escritora. Sobre a autora, veja também: "Cabeça de Antígona" (Ed. Reformatório)





“A tradução é uma forma de possessão”


António Sousa Ribeiro foi distinguido com o Grande Prémio de Tradução Literária pela tradução de “Os Últimos Dias da Humanidade”, de Karl Kraus. “As línguas são incomensuráveis. São diferentes, portanto, à partida, a tradução é impossível. Toda a tradução assenta neste paradoxo da intraduzibilidade”, diz o investigador.

Traduz nas horas vagas. São as horas em que deixa de ser professor, coordenador de doutoramentos, investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, e passa a ser um tradutor, isto é, alguém que luta com a impossibilidade da sua própria tarefa, com a imperfeição, com o indizível. No caso de uma obra como "Os Últimos Dias da Humanidade", de Karl Kraus, com que ganhou no mês passado o Grande Prémio de Tradução Literária, da Associação Portuguesa de Tradutores (APT), as horas têm de ser imersivas, quase obsessivas. São centenas de páginas, 210 cenas de um texto dramático impossível de ser totalmente representado. São horas e horas a pensar na forma como uma sociedade pode aderir à violência. É a grande obra sobre a Primeira Grande Guerra e marca o fim de uma era, possivelmente o princípio da nossa, em que adquirimos novas tecnologias, mas mantemos velhas ideias sobre heroísmo e velhos ódios. 

1. São 210 cenas, 700 páginas na edição alemã. Consegui, com a colaboração da Antígona, publicar uma edição de cenas seleccionadas em 2003. Há muito tempo que tinha o projecto de traduzir toda a obra, mas ninguém traduz uma obra deste tipo para a gaveta. Quando o Teatro Nacional de São João decidiu avançar com o projecto [de encenar "Os Últimos Dias da Humanidade"], contactaram-me para traduzir o que faltava. Era ainda muito, cerca de metade.
Traduzir é um trabalho fascinante. A minha dificuldade era satisfazer as minhas obrigações, que não são poucas, como investigador e docente, quando muitas vezes o que me apetecia era estar fechado em casa a traduzir.

É preciso uma imersão. Uma pessoa tem de estar quase possuída por aquelas vozes. Eu andava pela casa a recitar aqueles vozes. É uma forma de possessão. Uma pessoa tem de estar possuída pelo texto original para depois, pouco a pouco, ir construindo o que o texto pode ser noutra língua.

As línguas são incomensuráveis. Portanto, à partida, a tradução é impossível. Toda a tradução assenta neste paradoxo da intraduzibilidade. 

Quando falo de tradução aos meus alunos, começo por lhes dizer que, na raiz de todo o acto de tradução, está a impossibilidade da tradução. Porque as línguas são incomensuráveis. São diferentes, portanto, à partida, a tradução é impossível. Toda a tradução assenta neste paradoxo da intraduzibilidade. Para mim, a tradução é quase uma luta. Luta para quê? Para vencer este pressuposto da intraduzibilidade.

Uma tradução é uma reescrita. Como costumo dizer, a versão portuguesa de "Os Últimos Dias da Humanidade" é de Karl Kraus e minha. Há um autor americano de estudos de tradução que tem um livro justamente sobre a invisibilidade do tradutor, sobre concepções de tradução em que o tradutor se torna invisível, como se o texto, por um milagre qualquer, passasse de uma língua para outra. O tradutor está lá e o tradutor não se limita a servir de ponte. O tradutor interfere.

Existir um prémio de tradução é bom, justamente para vencer esta invisibilidade. São muito poucas ainda as editoras que colocam o nome do tradutor na capa do livro. Muitas vezes, o nome do tradutor aparece num sítio qualquer, semi-envergonhado.

2. Desde 1989, Kraus publicava a sua própria revista. No início, era uma revista como outras, com vários autores a colaborar, mas a partir de determinado momento ele escreve a revista sozinho. São muitos milhares de páginas. Desde muito cedo, ele tinha desenvolvido na revista uma técnica que podemos chamar de glosa documental, isto é, a citação seja de um texto de imprensa, seja de um texto literário, seja de uma entrevista, do que for. Ele pegava num fragmento, por exemplo, de uma notícia de jornal e trabalhava-o do ponto de vista de sublinhar aquilo que nessa notícia era revelador do estado de uma época, do estado de uma sociedade. Ele tinha aperfeiçoado esta técnica já num contexto de guerra, durante a guerra dos Balcãs de 1911-1912. Tinha acompanhado de perto a forma como a imprensa austríaca cobria a guerra nos Balcãs e tinha encontrado exemplos perfeitamente chocantes de insensibilidade perante o sofrimento e de promoção do ódio belicista.

Alguns textos dele, de 1911 e 1912, são reproduções de notícias de jornal, que num novo contexto da revista se tornam reveladoras dessa violência. Na verdade, o que ele faz em "Os Últimos Dias da Humanidade" é levar esta técnica até às últimas consequências. Ele começou a escrever a peça em 1915, muito perto do início da guerra, e foi escrevendo e incorporando muitos dos textos que ia publicando na revista e que transformava em cenas. Há cenas inteiras de citações. Por exemplo, as cenas em que aparece uma jornalista, que foi a primeira jornalista mulher acreditada como correspondente de guerra. Os textos que ela enviava da linha frente eram um chorrilho de lugares-comuns. Ela chega junto do cabo artilheiro e pergunta: "Como é que se sente? Diga-me o que lhe vai no íntimo." Explora o lado sentimental, muito a partir de uma ideia de herói e de uma visão romântica da guerra. A jornalista aparece como uma personagem e o que a personagem diz corresponde ao texto dos seus folhetins jornalísticos.
Há, no trabalho de Kraus, uma preocupação documental e, como os documentos não paravam de chegar, porque os jornais publicavam-se todos os dias, porque as conversas de rua que ele ouvia e reproduzia, se produziam todos os dias, a peça ia crescendo. Em 1919, publicou uma primeira versão e, em 1922, uma segunda versão mais extensa. Perto do final dos anos 1920, ele diz o seguinte: deixei mil cenas que ficaram por escrever, aqui vai mais uma. Podia-se sempre acrescentar. A realidade não deixava de fornecer motivos permanentes de indignação.
3. Há uma frase famosa de Paul Valéry que diz: depois dessa guerra, a civilização europeia ficou a saber que era mortal.

Havia esta sensação de cesura, de fim de uma época. O historiador Eric Hobsbawm, que tinha origem austríaca, diz que na família dele, quando falavam dos anos da paz, referiam-se aos anos antes da Primeira Guerra Mundial, porque os anos que mediaram entre a Primeira e a Segunda Guerra já não eram anos da paz.

Era uma época que se tinha encerrado definitivamente e tinha começado uma crise que depois desemboca no nazismo, no fascismo, nos nacionalismos europeus e na Segunda Guerra Mundial e no Holocausto.

O tradutor está lá e o tradutor não se limita a servir de ponte. O tradutor interfere. (...) São muito poucas ainda as editoras que colocam o nome do tradutor na capa do livro.

O Kraus teve a presciência de perceber isso mesmo, de uma maneira muito mais lúcida do que possivelmente a maior parte dos seus contemporâneos. Kraus captou muito bem a modernidade da guerra. Kraus chamou à guerra a aventura técnico-romântica. Captou perfeitamente o momento em que a ciência e a técnica estavam a ocupar o lugar decisivo. Hoje, um combatente pode ser alguém que está em Los Angeles a manipular um drone.

Uma guerra tecno-romântica é uma guerra que é desenvolvida com todos os meios da tecnologia moderna, mas que preserva uma aura romântica e ideias de heroísmo, que são completamente falsas, mas que, no fundo, são as ideias que continuam a ser mobilizadas para que as pessoas aceitem a sua condição de combatentes e sejam levadas a cometer crimes.


Fonte: Jornal de Negócios, por Susana Moreira Marques, 26 de janeiro de 2018. Texto selecionado por Damiana Rosa de Oliveira, tradutora e legendadora (esp>port)


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