quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Llorar lágrimas de cocodrilo

Es un dicho arraigado en el folclor de diversas culturas alrededor del mundo que se aplica a quienes manifiestan un comportamiento hipócrita
 o no lloran de corazón.
La conseja se inspiró en la creencia generalizada de que el cocodrilo es un timador consumado, ya que, para despertar la compasión de los oyentes, animales u hombres, y atraerlos a sus dominios para devorarlos, finge 
el lastimoso llanto de un ser desvalido. Memorable es la sentencia que William Shakespeare expresa acerca de la falsa aflicción cocodriliana cuando Otelo, perturbado por los celos y los comentarios de su mujer Desdémona, le refiere: «¡Oh, diablesa, diablesa! Si la tierra pudiera fecundarse con lágrimas de mujer, cada gota que viertes se convertiría en un cocodrilo. ¡Fuera de mi vista!».
Por curioso que resulte, es verdad que tanto el lagrimeo como el gemir son condiciones del comportamiento cocodriliano, mas no como resultado de expresar viciosos sentimientos humanos, sino como parte de estrategias biológicas que le han valido la permanencia sobre la faz del planeta por cerca de 350 millones de años.
Por mucho tiempo se pensó que el cocodrilo llora para engañar a una potencial presa o, peor aún, después de zampársela. Pero el reptil no es ni hipócrita ni compasivo 
y, por consiguiente, no derrama lágrimas a causa de estas congojas. Lo que ocurre es que tiene un aparato potabilizador: sus riñones a menudo no pueden liberarse de todos los excedentes de sales que recibe el organismo y, entonces, acuden en su ayuda unas glándulas que tienen en los ojos, llamadas harderianas, a través de las cuales expulsa las sales, diluidas en agua, como si de lágrimas se tratase. También sus glándulas lagrimales producen un fluido, muy similar a nuestras lágrimas, que le ayuda a lubricar sus ojos para mantenerlos limpios y libres de bacterias.
Además, los cocodrilos sobresalen de entre los reptiles por
 su gran capacidad de vocalización. Los sonidos que emiten estos saurios prehistóricos varían desde las cavernosas voces que los machos emplean para cortejar a las hembras durante la temporada de apareamiento, hasta los agudos «llamados» de auxilio con que los recién nacidos avisan a la madre que acaban de salir del cascarón o que se encuentran bajo amenaza.
Posiblemente estas voces cocodrílicas fueron interpretadas
 en el pasado como lastimosos gemidos de engaño porque, desde la insidiosa perspectiva humana, solamente la hipocresía puede expelerse del interior de un depredador consumado cuyo único propósito en la vida es saciar su permanente sed de sangre y carne.
No cabe duda que en la construcción de este singular proverbio, interviene más el mito que la realidad. La mitificación que los humanos han hecho de los reptiles o de su comportamiento, se resume perfectamente en las palabras que Herbert Wendt utilizó para explicar por qué los hechos reales de la naturaleza se ocultan tras el velo de sucesos fabulosos contenidos en proverbios, refranes, apotegmas, mitos y leyendas: en las personas de todos los tiempos y todas las culturas, invariablemente «su fantasía funcionaba mejor que su vista —y hasta que su oído— […]»


Texto tomado de Algarabía 71








quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Um céu todo estrela



então se fez fonte
o que só era toque.
 
um céu todo estrela
no encontro dos olhos,
 
um fulgor que enlaça
a calmaria da febre
 
onde o tempo se despe
 
e a carne clama um ato
ainda sem nome
 
***
 
procura-se o desassossego
das horas inquietas e úmidas,
a violada canção sagrada
a arder em desertos diários.
 
procura-se o incerto,
a secura ilhada do silêncio,
o tédio das cidades fantasmas,
os caminhos sem saídas,
a íntima falta
que a memória não dissipa.
 
procura-se a mina – os passos
correm o campo, descalços:
a explosão única e precisa,
a limítrofe errância  
entre o plano e o precipício.
 
procura-se a voraz vertigem,
o sagrado impregnado do profano,
a humana redenção à vida.
 
procura-se o maior abismo
escavado no coração da terra,
do céu, no peito do aflito,
 
o fogo mais intenso e quase extinto,
o manancial do delírio,
a hora em que deflora a flor
o inseto e tudo é lindo.
 
procura-se a loucura, o delíquio:
tudo aquilo a que o amor se lança
fingindo não temer o risco
 
***
 
ubuntu,
meu coração desafia
não ser um.
 
juntos, compartir o fruto.
nem mesmo as mãos
são só duas, quando estendidas
ao futuro.
 
bem mais em mim que o dobro
em tudo, revoluz, vislumbro o todo
e pó, que sou, solto pelo mundo.
 
seguem as dunas
e não duram eternas ao vento.
à margem do mar, marejado olhar suspenso,
aconchega a ilusão de um mundo tão pequeno;
até correr, pés, utopia, o espaço incalculável
do universo, quando esquecemos o tempo:
 
cemitério indesvendável do nada 
 
***
 
canto,
mesmo que o canto
não compreenda
os ossos todos dos ecos,
 
nem saiba
o sibilino mistério do assombro
de se evocar, em poucas palavras,
o mesmo e o novo,
 
como a água evoca a água
o ar o ar a terra a terra
o fogo o fogo a mulher a vida.
 
gesto o canto mesmo quando
pareço silêncio

***
como se a casa fosse
de sua alma erigida,
sobre a forma que trouxe
à luz a sua própria vida,
 
é nessa casa que habita
meu ser que se recria:
 
sobre a forma que trago,
de minha alma ser a casa
onde nosso amor cultiva
uma troca de moradas,
 
que é a mesma casa,
a vida
 
***
agora o pouco
é tudo
o que nos resta.
 
agora é tudo.
 
é muito
pedir pouco.
 
agora resta
a vida e seus outros mistérios,
 
sua presença constante
e a fuga sempre certa
do tempo.
 
agora tudo 
é o que nos resta
 
(“Um céu todo estrela” - Alex Dias)








Alex Dias é poeta, ator e gestor cultural. Autor dos livros de poesia Lírica Abissal, lançado pela editora Urutau (2016) e Um céu todo estrela, lançado pela editora Patuá (2017), é Coordenador de Programação do Sesc Birigui e mestrando em Teorias e Crítica da Poesia, pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UNESP de Araraquara, com a pesquisa: Construção e utopia na poesia de invenção. Tem pós-graduação em “Gestão Cultural: Cultura, Desenvolvimento e Mercado” (2016). Possui graduação em Ciências da Informação e da Documentação e Biblioteconomia pela USP de Ribeirão Preto (2006). Fundou e dirige a empresa Osnáuticos – de Arte, Cultura e Educação – onde desenvolve projetos que englobam poesia, literatura, cinema, música e artes cênicas e visuais. Também fundou e coordena o "Poéticas – Laboratório de pesquisa e Criação Literária e Poética" e o projeto "Bagagem... Poesia!", voltado à mediação de leituras. Fez Magistério (2002) em São José do Rio Preto.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Quarta-Feira de Cinzas


“Naquele dia, a cidade ainda dormia ou ia se levantando lentamente. Apesar de São Paulo se vangloriar de ser o maior centro industrial da América Latina, como anunciavam seus vermelhos bondes ‘camarão’, o silêncio e a modorra se explicavam: não se tratava de uma quarta-feira qualquer, e sim de uma Quarta-Feira de Cinzas, após três dias de carnaval.

Mas nem tudo estava parado. Os lixeiros percorriam as ruas, recolhendo os restos da folia no centro da cidade. Cacos de vidro de lança-perfumes, serpentinas emaranhadas, garrafas de cerveja, iam sendo lançados nos caminhões de lixo, embora fosse difícil apagar todos os vestígios de uma festa que introduzira uma cunha brejeira na marcha cotidiana da cidade sisuda.

Dentre os vestígios, os confetes coloridos teimaram em ficar grudados ao asfalto, resistindo às vassouras dos lixeiros até que fossem arrastados pelas chuvas fortes de verão.”

(“O Crime do Restaurante Chinês” - Boris Fausto)


terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

“A cadela do fascismo continua no cio”


… Assim falava Bertoldt Brecht em sua célebre frase. Todos sabemos que os tempos de hoje são tempos favoráveis às criaturas sombrias. O grande cineasta George A. Romero, pai dos filmes de zumbis, morreu há pouco tempo, mas nos deixou de herança esta simbologia dos mortos-vivos e vivos-mortos. O que retorna do túmulo permanece vivo, mas agora é vivo-morto. A cinematografia recente vem trazendo nas suas representações os efeitos drásticos de se viver numa terra arrasada por zumbis. Estas duas imagens ilustram o retorno do ódio neste período recursivo da história, do ódio que mora no coração dos homens e que retorna como super bactéria, se alastrando pelo ressentimento cíclico ou por uma nova forma vil e gratuita de contaminação via redes sociais.

No Brasil, estamos vivendo tempos de terra arrasada, tempos de exceção, tempos de perda da nossa democracia – tão jovem – junto à plena perda de direitos duramente conquistados por anos de luta e desassossego dos oprimidos, dos que estavam e ainda estão nos movimentos sociais, nos movimentos feministas e no feminismo negro, nos movimentos negros, quilombolas, indígenas, LGBTs.

Mas, para lembrar um filme bem brasileiro, é “ódiquê”? É o ódio ao povo, ódio ao negro, mas principalmente ódio à negra – que chegou ao ensino superior, à pós-graduação, ao Miss Brasil. É ódio aos nordestinos e mais ódio às nordestinas com suas “caras de empregadinhas”. O ódio às negras e nordestinas pobres que recebem o Bolsa Família e se recusam a voltar para as cozinhas sofisticadas dos neocolonialistas, que se recusam a trabalhar sem direitos nas novas senzalas.

O ódio da classe média-medíocre é o ódio às políticas públicas, às universidades que, na visão distorcida dos que odeiam, criaram cotas que facilitaram a entrada dos pobres, negros, nordestinos, a confluência de todas as margens para um lugar não destinado a elas: a mobilidade social. É o ódio tacanho, torpe, que mata e violenta todos os dias – os homossexuais, as mulheres, a juventude negra, as crianças pobres – e que vai num crescendo se formando enquanto avalanche e genocídio.

Quantas pessoas já foram assassinadas no Brasil em 2017? Quantas delas eram negras? E no mundo? Quantas eram imigrantes? Quantas eram mulheres? Quantas eram crianças? Há uma relação muito estreita entre neocapitalismo, racismo, xenofobia e a negação dos excluídos. Declarar guerra aos pobres e aos indesejáveis é o tipo de absurdo que se pauta nas mesmas justificativas sempre utilizadas pelas classes dominantes para punir os considerados fracos e elimináveis: prender, vigiar, negar a existência. E se nada disso der certo – caçá-los com cães, matar e tirar da vista. Nas palavras de Foucault, no clássico Vigiar e Punir:

“Apresentá-los como bem próximos, presentes em toda parte e em toda parte temíveis. É a função do noticiário policial que invade parte da imprensa e começa a ter seus próprios jornais. A notícia policial, por sua redundância cotidiana, torna aceitável o conjunto dos controles judiciários e policiais que vigiam a sociedade.”

É preciso sempre lembrar que esse discurso mata. Dizer no programa de televisão que “bandido bom é bandido morto” mata. Esta semente diária do ódio que nasceu da injustiça social, assim como o desejo de massacre contínuo, a permanente ideia de eliminação do outro, todos esses elementos de ódio vão se tornando parte do nosso cotidiano e, como bem diz Foucault, vão tornando o discurso palatável, aceitável. Os elimináveis são apresentados aqui como parte temível. Eliminar faz parte do jogo que migra do discurso para a banalização da ação. A julgar pelo que vejo neste jogo do fascismo, logo avançaremos uma casa e chegaremos ao “pobre bom é pobre morto”.

Mas de quantos mortos precisamos para fazer uma guerra?

Intolerância. Ódio. Falta de empatia. Fundamentalismo religioso. Homofobia. Machismo e Feminicídio. Radicalismo conservador. Há muito para se refletir sobre esses atos de violência e barbárie. As práticas discursivas da atualidade e o desejo paradoxal de empatia em tempos individualistas, de completa indiferença, além da alienação do outro nos torna testemunhas do estrangulamento do humanismo em mídias públicas.

Vivemos em tempos de cyber-sociedade. Quando algo da natureza do ódio estrutural acontece, como vírus em termos de rapidez e descarte, vai se tornando difícil encontrar, desenvolver qualquer código de compreensão da alteridade. Não falo em ética, algo mais profundo na escala do conhecimento. Falo de discernimento e compreensão, porque é o mínimo que deveria emergir dessa esfera mais à derme do humano. Também não falo em humanismo, outra demanda importante, mas ainda vista pelo conceitual.

Quero falar da compreensão mínima do outro que está na base primeira do viver-com, do conviver. Compreensão como ação cotidiana, a da rotina mais usual entre os seres humanos. A compreensão da palavra, do gesto, da pessoa. Penso nessas relações líquidas, frágeis, instantâneas das novas sociabilidades que giram nas mídias sociais, e vejo o desrespeito total ao que é diferente, linchamentos virtuais e o ódio disseminado através de mensagens viralizadas que só causam mais dor e mais violência. O ódio e o ressentimento sempre existiram, mas a dinâmica das redes sociais ligou os pontos dos extremos, amplificou, tirou do armário os que ainda tinham certo constrangimento de expor o machismo, o fascismo, o racismo, a homofobia, a transfobia, a xenofobia etc.

Culpabilizar o outro por seu isolamento cultural ou social, culpabilizar pela desterritorialização, migração, imigração, exílio é o estopim do que há de pior nas ações de ódio. Quando os fascistas das manifestações se unem aos pseudomoderados do discurso, aqueles que odeiam estruturalmente deixam suas casas e constroem com as próprias mãos novos guetos, outros campos de exclusão e extermínio, outras fronteiras.

Com quantos ódios fazemos uma guerra? Com quantas guerras alimentaremos tanto ódio?
Patricia de Cassia Pereira Porto
Mestre em Educação no Campo de Confluência dos Estudos do Cotidiano e da Educação Popular (ECEP/2004). Doutora em Políticas Públicas, Movimentos Instituintes e Educação (PPMIE/2009). Professora Universitária. Coordenadora de Projetos Educacionais. Escritora. Sobre a autora, veja também: "Cabeça de Antígona" (Ed. Reformatório)





“A tradução é uma forma de possessão”


António Sousa Ribeiro foi distinguido com o Grande Prémio de Tradução Literária pela tradução de “Os Últimos Dias da Humanidade”, de Karl Kraus. “As línguas são incomensuráveis. São diferentes, portanto, à partida, a tradução é impossível. Toda a tradução assenta neste paradoxo da intraduzibilidade”, diz o investigador.

Traduz nas horas vagas. São as horas em que deixa de ser professor, coordenador de doutoramentos, investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, e passa a ser um tradutor, isto é, alguém que luta com a impossibilidade da sua própria tarefa, com a imperfeição, com o indizível. No caso de uma obra como "Os Últimos Dias da Humanidade", de Karl Kraus, com que ganhou no mês passado o Grande Prémio de Tradução Literária, da Associação Portuguesa de Tradutores (APT), as horas têm de ser imersivas, quase obsessivas. São centenas de páginas, 210 cenas de um texto dramático impossível de ser totalmente representado. São horas e horas a pensar na forma como uma sociedade pode aderir à violência. É a grande obra sobre a Primeira Grande Guerra e marca o fim de uma era, possivelmente o princípio da nossa, em que adquirimos novas tecnologias, mas mantemos velhas ideias sobre heroísmo e velhos ódios. 

1. São 210 cenas, 700 páginas na edição alemã. Consegui, com a colaboração da Antígona, publicar uma edição de cenas seleccionadas em 2003. Há muito tempo que tinha o projecto de traduzir toda a obra, mas ninguém traduz uma obra deste tipo para a gaveta. Quando o Teatro Nacional de São João decidiu avançar com o projecto [de encenar "Os Últimos Dias da Humanidade"], contactaram-me para traduzir o que faltava. Era ainda muito, cerca de metade.
Traduzir é um trabalho fascinante. A minha dificuldade era satisfazer as minhas obrigações, que não são poucas, como investigador e docente, quando muitas vezes o que me apetecia era estar fechado em casa a traduzir.

É preciso uma imersão. Uma pessoa tem de estar quase possuída por aquelas vozes. Eu andava pela casa a recitar aqueles vozes. É uma forma de possessão. Uma pessoa tem de estar possuída pelo texto original para depois, pouco a pouco, ir construindo o que o texto pode ser noutra língua.

As línguas são incomensuráveis. Portanto, à partida, a tradução é impossível. Toda a tradução assenta neste paradoxo da intraduzibilidade. 

Quando falo de tradução aos meus alunos, começo por lhes dizer que, na raiz de todo o acto de tradução, está a impossibilidade da tradução. Porque as línguas são incomensuráveis. São diferentes, portanto, à partida, a tradução é impossível. Toda a tradução assenta neste paradoxo da intraduzibilidade. Para mim, a tradução é quase uma luta. Luta para quê? Para vencer este pressuposto da intraduzibilidade.

Uma tradução é uma reescrita. Como costumo dizer, a versão portuguesa de "Os Últimos Dias da Humanidade" é de Karl Kraus e minha. Há um autor americano de estudos de tradução que tem um livro justamente sobre a invisibilidade do tradutor, sobre concepções de tradução em que o tradutor se torna invisível, como se o texto, por um milagre qualquer, passasse de uma língua para outra. O tradutor está lá e o tradutor não se limita a servir de ponte. O tradutor interfere.

Existir um prémio de tradução é bom, justamente para vencer esta invisibilidade. São muito poucas ainda as editoras que colocam o nome do tradutor na capa do livro. Muitas vezes, o nome do tradutor aparece num sítio qualquer, semi-envergonhado.

2. Desde 1989, Kraus publicava a sua própria revista. No início, era uma revista como outras, com vários autores a colaborar, mas a partir de determinado momento ele escreve a revista sozinho. São muitos milhares de páginas. Desde muito cedo, ele tinha desenvolvido na revista uma técnica que podemos chamar de glosa documental, isto é, a citação seja de um texto de imprensa, seja de um texto literário, seja de uma entrevista, do que for. Ele pegava num fragmento, por exemplo, de uma notícia de jornal e trabalhava-o do ponto de vista de sublinhar aquilo que nessa notícia era revelador do estado de uma época, do estado de uma sociedade. Ele tinha aperfeiçoado esta técnica já num contexto de guerra, durante a guerra dos Balcãs de 1911-1912. Tinha acompanhado de perto a forma como a imprensa austríaca cobria a guerra nos Balcãs e tinha encontrado exemplos perfeitamente chocantes de insensibilidade perante o sofrimento e de promoção do ódio belicista.

Alguns textos dele, de 1911 e 1912, são reproduções de notícias de jornal, que num novo contexto da revista se tornam reveladoras dessa violência. Na verdade, o que ele faz em "Os Últimos Dias da Humanidade" é levar esta técnica até às últimas consequências. Ele começou a escrever a peça em 1915, muito perto do início da guerra, e foi escrevendo e incorporando muitos dos textos que ia publicando na revista e que transformava em cenas. Há cenas inteiras de citações. Por exemplo, as cenas em que aparece uma jornalista, que foi a primeira jornalista mulher acreditada como correspondente de guerra. Os textos que ela enviava da linha frente eram um chorrilho de lugares-comuns. Ela chega junto do cabo artilheiro e pergunta: "Como é que se sente? Diga-me o que lhe vai no íntimo." Explora o lado sentimental, muito a partir de uma ideia de herói e de uma visão romântica da guerra. A jornalista aparece como uma personagem e o que a personagem diz corresponde ao texto dos seus folhetins jornalísticos.
Há, no trabalho de Kraus, uma preocupação documental e, como os documentos não paravam de chegar, porque os jornais publicavam-se todos os dias, porque as conversas de rua que ele ouvia e reproduzia, se produziam todos os dias, a peça ia crescendo. Em 1919, publicou uma primeira versão e, em 1922, uma segunda versão mais extensa. Perto do final dos anos 1920, ele diz o seguinte: deixei mil cenas que ficaram por escrever, aqui vai mais uma. Podia-se sempre acrescentar. A realidade não deixava de fornecer motivos permanentes de indignação.
3. Há uma frase famosa de Paul Valéry que diz: depois dessa guerra, a civilização europeia ficou a saber que era mortal.

Havia esta sensação de cesura, de fim de uma época. O historiador Eric Hobsbawm, que tinha origem austríaca, diz que na família dele, quando falavam dos anos da paz, referiam-se aos anos antes da Primeira Guerra Mundial, porque os anos que mediaram entre a Primeira e a Segunda Guerra já não eram anos da paz.

Era uma época que se tinha encerrado definitivamente e tinha começado uma crise que depois desemboca no nazismo, no fascismo, nos nacionalismos europeus e na Segunda Guerra Mundial e no Holocausto.

O tradutor está lá e o tradutor não se limita a servir de ponte. O tradutor interfere. (...) São muito poucas ainda as editoras que colocam o nome do tradutor na capa do livro.

O Kraus teve a presciência de perceber isso mesmo, de uma maneira muito mais lúcida do que possivelmente a maior parte dos seus contemporâneos. Kraus captou muito bem a modernidade da guerra. Kraus chamou à guerra a aventura técnico-romântica. Captou perfeitamente o momento em que a ciência e a técnica estavam a ocupar o lugar decisivo. Hoje, um combatente pode ser alguém que está em Los Angeles a manipular um drone.

Uma guerra tecno-romântica é uma guerra que é desenvolvida com todos os meios da tecnologia moderna, mas que preserva uma aura romântica e ideias de heroísmo, que são completamente falsas, mas que, no fundo, são as ideias que continuam a ser mobilizadas para que as pessoas aceitem a sua condição de combatentes e sejam levadas a cometer crimes.


Fonte: Jornal de Negócios, por Susana Moreira Marques, 26 de janeiro de 2018. Texto selecionado por Damiana Rosa de Oliveira, tradutora e legendadora (esp>port)


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