quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

TRADUÇÃO DO DISCURSO JURÍDICO


TRADUÇÃO DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DESAFIOS ENTRE A LINGUAGEM, OS DISCURSOS E OS SISTEMAS JURÍDICOS.[1]

Renata Cristina Biagi Moreno[2]

Resumo: O presente artigo tem o objetivo analisar os desafios da tradução do discurso jurídico em vista de fatores como a diferença lógica de cada discurso, a linguagem, e o aspecto flutuante da linguagem dentro de um mesmo sistema jurídico. Todo discurso é uma construção social e deve ser analisado e entendido dentro do contexto social no qual está inserido. O discurso jurídico é um elo entre o homem, a lei e as instituições. Pensar em linguagem sem pensar na sua exteriorização, seria não vislumbrar, o aspecto argumentativo. A prática do Direito se fundamenta na língua e, em meio à linguagem jurídica as palavras podem adquirir sentidos diferentes, o mesmo ocorrerá com o discurso, obedecendo à lógica do sistema à qual pertence. Abordaremos o “juridiquês” no Brasil como produto do excesso de hermetismos na linguagem e na construção textual, que impedem a clareza jurídica e o acesso à Justiça e deve ser visto como um desvio da linguagem jurídica. Nossa proposta não é de criar estratégias de tradução, mas de refletir sobre o texto jurídico e sua linguagem, fatores que, certamente, contribuíram para a transposição possível do discurso jurídico.

Palavras-chave: Discurso Jurídico. Tradução Técnica Jurídica. Linguagem Jurídica. “Juridiquês”. Sistemas jurídicos.

1. Introdução
 
A tradução do discurso jurídico não se restringe em passar um texto de uma língua para outra, mas também de um sistema jurídico para outro. Partindo de tal premissa, o trabalho do tradutor jurídico exige critérios bem estabelecidos, além de conhecimento do percurso histórico das línguas de destino e alvo. Isso porque cada sistema jurídico advém de uma cultura que tem seu próprio espírito jurídico. A metodologia da tradução jurídica deve levar à elaboração de um discurso que seja o reflexo de uma prática cultural.
 
Todo discurso é uma construção social e deve ser analisado e entendido dentro do contexto social no qual está inserido. O discurso jurídico é um elo entre o homem, a lei e as instituições.

(...) determinados processos de comunicação são necessários para a manutenção de uma sociedade, de suas unidades e do entendimento existente entre seus membros. (...) A sociedade é (...) diariamente estimulada e criadoramente renovada por atos individuais de natureza comunicativa, carretando a participação dos homens nela.
(SAPIR apud CARDOSO, 1975).
 
As peculiaridades da linguagem jurídica brasileira em seu perfil linguístico e discursivo, conhecido pelo neologismo “juridiquês” ocorrem, sem sombra de dúvidas, como herança cultural de vários sistemas jurídicos que o influenciaram como o português, o francês, o americano, o alemão, o suíço e o italiano. Mas, além dessa “hibridação”, outro fator contribuiu para a construção do discurso jurídico brasileiro: a tradição lusitana da Escola de Coimbra.

No Brasil, somente em 11 de agosto de 1897 é que foram criados os dois primeiros cursos de ciências jurídicas e sociais, em Olinda e São Paulo. Antes todos aqueles que almejassem bacharelar-se em Direito, deveriam atravessar o atlântico para estudar na Europa e o destino favorito era Portugal e a secular Universidade de Coimbra.

Curiosamente fundada em Lisboa em 1290 pelo rei D. Dinis, a Universidade de Coimbra é uma das mais antigas da Península Ibérica e após um singular processo itinerante entre Coimbra e Lisboa, em 1537, no reinado de D. João III, foi definitivamente transferida para Coimbra. Das poucas alterações institucionais que sofreu destaca-se a de 1837 com a fusão das Faculdades de Leis e de Cânones na Faculdade de Direito[3].

O jurista brasileiro Ruy Barbosa, um dos maiores intelectuais do país, é apontado por Alberto Venâncio Filho, como um “fator histórico” que também incentivou a peculiaridade da linguagem jurídica no Brasil, através de seus discursos de fundamentação ideológica prolixa, opulento, com ares de barroquismo. (VENÂNCIO FILHO, 2005).

Esta linguagem caracterizada por excessos, rebuscamentos, arcadismos e latinismos exagerados, passou a ser motivo de grandes discussões e reflexões. O costume de dificultar, e até inviabilizar, a comunicação é comum não só entre juízes, mas também entre advogados e outros profissionais da área jurídica. De tal modo que a Associação dos Magistrados Brasileiros, em 2005, promoveu a campanha pela simplificação da linguagem jurídica.

Ninguém valoriza o que não conhece. Partindo desse mote, a AMB lançou no dia 11 de agosto de 2005, na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Rio de Janeiro (RJ), campanha para simplificar a linguagem jurídica utilizada por magistrados, advogados, promotores e outros operadores da área. Para a entidade, a reeducação linguística nos tribunais e nas faculdades de Direito, com o uso de uma linguagem mais simples, direta e objetiva, está entre os grandes desafios para que o Poder Judiciário fique mais próximo dos cidadãos. (ASSOCIAÇÃO, 2007).

Na luta contra o “juridiquês”, a Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), promoveu concursos para estudantes e magistrados, palestras e até distribuiu uma cartilha com glossário de expressões jurídicas. O livreto chamado Judiciário ao alcance de todos: noções básicas do ‘juridiquês’ já está em sua segunda edição e inicia com um texto bastante curioso:

Diagnosticada a mazela, põe-se a querela a avocar o , poliglotismo. A solvência, a nosso sentir, divorcia-se de qualquer iniciativa legiferante. Viceja na dialética meditabunda, ao inverso da almejada simplicidade teleológica, semiótica e sintática, a rabulegência tautológica, transfigurada em plurilinguismo ululante indecifrável. Na esteira trilhada, somam-se aberrantes neologismos insculpidos por arremedos do insigne Guimarães Rosa, espalmados com o latinismo vituperante. Afigura-se até mesmo ignominioso o emprego da liturgia instrumental, especialmente por ocasião de solenidades presenciais, hipótese em que a incompreensão reina. A oitiva dos litigantes e das vestigiais por eles arroladas acarreta intransponível óbice à efetiva saga da obtenção da verdade real. Ad argumentandum tantum, os pleitos inaugurados pela Justiça pública, preceituando a estocástica que as imputações e defesas se escudem de forma ininteligível, gestando obstáculo à hermenêutica. Portanto, o hercúleo despendimento de esforços para o desaforamento do “juridiquês” deve contemplar igualmente a magistratura, o ínclito Parquet, os doutos patronos das partes, os corpos discentes e docentes do magistério das ciências jurídicas. Entendeu? (...).
(ASSOCIAÇÃO, 2007)

A iniciativa teve como ponto de partida uma pesquisa do Instituto Ibope, encomendada pela própria AMB, que revelou o incômodo da população brasileira com a lentidão dos processos na Justiça e a linguagem prolixa e pedante.
 
Mas este não é um fenômeno isolado. No direito espanhol, em 2009, o Ministério da Justiça incluiu no Plano Estratégico para a Modernização do Sistema de Justiça a criação de uma Comissão para a Modernização da Linguagem Jurídica. Esta comissão teve como tarefa emitir um relatório com recomendações sobre a linguagem a ser empregada pelos profissionais do direito, a fim de que os cidadãos pudessem compreender seus textos com mais clareza. O relatório foi elaborado com base em estudos realizados por renomados filólogos, sob a supervisão da Real Academia Española. A comissão afirma que a clareza da linguagem jurídica requer o compromisso não só por parte dos profissionais, mas das instituições envolvidas, e as recomendações do relatório foram dirigidas também aos meios de comunicação. Dentre as principais práticas que os profissionais do direito deveriam evitar, o relatório destacou: concatenação excessiva de frases subordinadas, o uso de voz passiva (pouco usual em língua espanhola) e uso de arcaísmos. O relatório também condenou o uso excessivo do gerúndio e a incongruência no uso de tempos verbais, além de expressões em latim, que devem ser substituídas por seu significado em espanhol ou devem ser seguidas de sua tradução entre parêntesis.

El empleo de un lenguaje más sencillo y comprensible en el ámbito jurídico es una asignatura pendiente desde hace tiempo. La Carta de Derechos del Ciudadano ante la Justicia, aprobada por unanimidad en el Congreso de los Diputados el 16 de abril de 2002, hace de la claridad del derecho una política pública y reconoce a la ciudadanía el derecho a comprender. Ante esta necesidad, se constituyó la Comisión para la Modernización del lenguaje jurídico que en septiembre de 2011 presentó su informe al Consejo de Ministros. El informe contiene recomendaciones sobre corrección lingüística y ofrece una guía de ejemplos para mejorar la redacción de los escritos jurídicos. En él se reconoce que los ciudadanos consideran críptico el lenguaje judicial y propone sustituir los particularismos lingüísticos por términos del lenguaje común, siempre que sea posible. Las recomendaciones propuestas por la Comisión van más allá de la pura ortografía y pretenden crear un marco institucional para devolver la relevancia que el uso del lenguaje nunca debió de perder.El informe se estructura en dos tipos principales de recomendaciones: A los profesionales: recomendaciones básicas sobre la base de los errores gramaticales y de sintaxis más comunes.
A las instituciones: corresponde a las instituciones impulsar medidas que permitan acercar el lenguaje jurídico al ciudadano y poner al alcance de nuestros profesionales del derecho medios suficientes para la búsqueda de la excelencia en su expresión lingüística.
(Informe de la Comisión de Modernización del Lenguaje Jurídico[4])
 
Logo, se a preocupação dos magistrados no Brasil e do Ministério da Justiça espanhol é a aproximação do cidadão à justiça, de forma que ele compreenda dos textos legais, o que é imprescindível à consolidação do Estado Democrático de Direito, para o tradutor o desafio vem em dobro! Ter conhecimento da formação histórica da linguagem jurídica em português é essencial na tradução de textos jurídicos fazendo com que o tradutor tenha que, necessariamente, conhecer não apenas as duas línguas (de partida e de chegada), mas as duas linguagens de especialidade, para que possa traduzir de uma linguagem jurídica para outra linguagem jurídica.

Embora os sistemas jurídicos entre o Brasil, Espanha e os países da América Latina de língua espanhola pertençam à mesma família: romano-germânico, a tradução jurídica implica a passagem do texto de partida não só para uma língua de chegada, mas deve observar a lógica da instituição a qual pertence (jurisdicional, doutrinária ou normativa), as imposições ideológicas, os aspectos sócio-históricos-culturais, além da linguagem natural. Pois, sendo a linguagem a base da comunicação, é um dos alicerces da vida em sociedade e, como o direito é o ponto de equilíbrio do convívio social, é inegável o liame entre a linguagem natural e a linguagem jurídica.

Assim, ainda que pertençam ao mesmo sistema, há o aspecto flutuante do significado das palavras devido à natureza das diferentes instituições, os próprios conceitos jurídicos são diferentes entre as nações, o que aumenta a dificuldade na tradução por um equivalente adequado.

Segundo o jurista espanhol Sainz Moreno: “a relação entre o Direito e a linguagem é de vinculação essencial. Não existe o Direito sem a linguagem, da mesma maneira que não existe o pensamento fora da linguagem. Trata-se, pois, de uma relação mais intensa que a mera sustentação.” (MORENO, 1976).

Pensar em linguagem sem pensar na sua exteriorização, seria não vislumbrar, o aspecto argumentativo. A prática do Direito se fundamenta na língua e, em meio à linguagem jurídica as palavras podem adquirir sentidos diferentes, o mesmo ocorrerá com o discurso, obedecendo à lógica do sistema à qual pertencem.

Portanto, no decurso deste trabalho, abordaremos a propagação do “juridiquês” no Brasil e seu viés sociológico e histórico e as grandes dificuldades da tradução jurídica entre o português e o espanhol, não apenas no seu aspecto peculiar, mas também no aspecto flutuante do significado da terminologia. Assim como o discurso jurídico é composto pela linguagem e pelo sistema, a tradução jurídica deve possuir a mesma fundamentação. Nossa proposta não é de sugerir estratégias de tradução, mas de analisar e refletir sobre o texto jurídico e sua linguagem, fatores que, certamente, contribuem para a melhor transposição possível do discurso jurídico.


2. O Discurso Jurídico

“Na ciência da linguagem, o termo ‘discurso’ vai muito além daquele feito pelos políticos.”
(BRANDÃO, 2004).

A linguagem é uma atividade exercida entre aquele que fala e aquele que ouve, entre aquele que escreve e aquele que lê. É um trabalho desenvolvido exclusivamente pelo homem, pois só ele tem a capacidade de se expressar pela linguagem verbal. Nas relações do dia a dia, fazemos um uso (quase) automático da linguagem, mas em situações mais complexas exige maior esforço, pois é necessário ajustar a linguagem ao contexto do discurso.

A palavra discurso tem diferentes significados e admite várias acepções, que seguem vertentes diversas. No sentido comum, na linguagem cotidiana, discurso é simplesmente fala, exposição oral, às vezes tem o sentido pejorativo de fala vazia, ou linguagem teatral. Portanto, podemos definir discurso como toda atividade comunicativa entre interlocutores, “produtora de sentidos que se dá na interação entre falantes.” (BRANDÃO, 2004). Para Eduardo Bittar, o discurso pode ser entendido como transporte do pensamento, da estrutura das ideias para a esfera da comunicação (BITTAR, 2009).

O falante/ouvinte, escritor/leitor são seres situados num tempo histórico, num espaço geográfico; pertencem a uma comunidade, a um grupo e por isso carregam crenças, valores culturais, sociais, enfim a ideologia do grupo, da comunidade de que fazem parte. Essas crenças, ideologias são veiculadas, isto é, aparecem nos discursos. É por isso que dizemos que não há discurso neutro, todo discurso produz sentidos que expressam as posições sociais, culturais, ideológicas dos sujeitos da linguagem. Às vezes, esses sentidos são produzidos de forma explícita, mas na maioria das vezes não. Nem sempre digo tudo que penso, deixo nas entrelinhas significados que não quero tornar claros ou porque a situação não permite que eu o faça ou porque não quero me responsabilizar por eles, deixando por conta do interlocutor o trabalho de construir, buscar os sentidos implícitos, subentendidos. Isso é muito comum, por exemplo, nos discursos políticos, no discurso jornalístico, e mesmo nas nossas conversas cotidianas. (BRANDÃO, 2004).

O discurso é algo que ultrapassa o nível puramente gramatical, ele apoia-se na linguagem, mas nele destacam-se também os interlocutores e a situação em que o discurso é produzido. Do ponto de vista do discursivo, todo enunciado só tem sentido no contexto em que é produzido. Um mesmo enunciado, em momentos diferentes, terá sentidos diferentes. O discurso é produzido por um sujeito e é em torno dele que se organizam as referências de tempo e de espaço, assumindo esse um determinado comportamento linguístico em relação àquilo que diz, e para quem diz. Ou seja, o discurso é uma forma de atuar, de agir sobre o outro, por isso, um de seus princípios gerais é dialogismo.

Todo discurso se constrói numa rede de outros discursos, de tal modo que nenhum discurso é único, mas está em constante interação com os discursos que já produzidos. Na lição de Solange Mittman, o discurso não nasce no indivíduo, sob sua vontade, nem mesmo começa e termina nele, mas remete sempre a outros discursos. Por isso o discurso nunca pode ser analisado de forma isolada, devendo ser remetido às relações de sentido nas quais é produzido (MITTMAN, 2003). Nessa interdiscursividade “o discurso é uma arena de lutas em que locutores, vozes, falando de posições ideológicas, sociais, culturais diferentes procuram interagir e atuar uns sobre os outros.” (BRANDÃO, 2004).

O discurso jurídico tem suas regras de construção específicas, além do seu vocabulário peculiar e imposições ideológicas. O direito positivo é difundido através de uma linguagem, que constitui seu modo de expressão. Essa linguagem destina-se à disciplina do comportamento humano e as regras jurídicas, que têm como objetivo organizar o comportamento das pessoas e para isso, o operador do direito valer-se de uma linguagem técnica, que se assenta ao discurso natural, mas que também possui palavras e expressões determinadas.

O discurso é um dos lugares em que a ideologia se manifesta, isto é, toma forma material, se torna concreta por meio da língua. (...) O discurso é o espaço em que saber e poder se unem, se articulam, pois quem fala, fala de algum lugar, a partir de um direito que lhe é reconhecido socialmente. O discurso é como um jogo estratégico que provoca ação e reação, é como uma arena de lutas (verbais, que se dão pela palavra) em que ocorre um jogo de dominação ou aliança, de submissão ou resistência, o discurso é o lugar em que se travam as polêmicas. Por causa do princípio do dialogismo, toda formação discursiva traz dentro de si, outras formações discursivas com que dialoga, contestando, replicando ou aliando-se a elas para dar força a sua fala. Por outro lado, um mesmo enunciado pode aparecer em formações discursivas diferentes, acarretando com isso sentidos diferentes conforme a posição sócio ideológica de quem fala. Isso porque apesar de a língua ser a mesma gramaticalmente, ela não é a mesma do ponto de vista discursivo, isto é, da sua realização, por causa da interferência desses fatores externos: quem fala, para quem se fala, de que posição social e ideológica se fala.
(BRANDÃO, 2004).

Não poderíamos falar de discurso jurídico sem antes apresentar dois importantes conceitos de Direito. O jurista brasileiro Miguel Reale, criador da Teoria Tridimensional diz que “direito é a ordenação heterônima, coercível e bilateral atributiva na medida do bem comum, segundo uma estrutura tridimensional.” (REALE, 2009). O filósofo do direito e jurista francês, León Duguit, considera que:

a palavra ‘direito’, na larga acepção, presta-se a designar duas concepções que, embora se interpenetrando intimamente, constituem campos diferentes: ‘o direito objetivo’ e o ‘direito subjetivo’. O ‘direito objetivo’ ou a ‘ regra de direito’ designa os valores éticos que se exige dos indivíduos que vivem em sociedade (...). O ‘direito subjetivo’, por sua vez constitui um poder do indivíduo que integra a sociedade.
(DUGUIT, 2009).

O Direito possui uma série de conceitos que têm por objetivo “explicar” os institutos jurídicos e que são utilizados pelo construtor da linguagem, ou seja: o magistrado ao proferir sua decisão, o advogado ao elaborar a petição inicial, o doutrinador ao dispor sobre determinado assunto.
 
O discurso jurídico constrói-se a partir de acontecimentos cotidianos e, na maioria das vezes, surge a partir de um problema. Assim, é de uma situação da vida em sociedade e a partir controvérsia que irá se construir um discurso jurídico.

O Direito, como prática de linguagem, nada mais é do que um instrumento de iteração social, do homem sobre o homem na trama social. Aliás, o discurso se manifesta linguisticamente por meio de textos, ele se materializa sob a forma de textos. E, é analisando os textos que se pode entender como funciona um discurso. Apesar de diferentes do ponto de vista da definição, discurso e texto ambos estão profundamente interligados.

A juridicidade, ou conjunto de práticas textuais de linguagem de Direito, possui aspectos concretos em meio aos demais fenômenos sócio-históricos-culturais. Assim, a juridicidade é vista como um sistema entre os sistemas, um produto social, entre os produtos sociais, de modo a justificar a investigação do surgimento do discurso jurídico. Sua estrutura complexa representa a dinâmica comunicação social, “e outros diversos componentes de culturalidade valorativa” (BITTAR, 2009).
 
Onde há textos e sujeitos envolvidos, haverá, sempre, uma complexa atividade de construção do sentido jurídico. Portanto, definir o discurso jurídico, é uma tarefa complexa. A ciência jurídica, por si só, tem forte conotação argumentativa e, portanto, o discurso jurídico tem o condão persuasivo por sua própria natureza.
 
Eduardo Bittar desmistifica o tema:

De um lado o discursus consiste no uso da racionalidade depurativa das ideias, contrapondo-se, portanto, à noção de intuição (noésis); o discursus envolve o cursus de uma proposição a outra, de modo que todo raciocínio encontra-se condicionado por esse percurso. De outro lado, o discurso é entendido como sendo logos, ou seja, o transporte do pensamento (noûs) das estruturas eidéticas para a esfera da comunicação, o uso do noûs na articulação da linguagem. O logos, em verdade, é o noûs feito em palavra, o que equivale a dizer que há uma passagem do simbólico abstrato e noético, do simbólico do pensamento e da formação das idéias, para o simbólico concreto e expressivo.
(BITTAR, 2009)

Como dissemos anteriormente, a tradução do discurso jurídico deve partir da lógica determinada à instituição que pertence, ou seja: jurisdicional, doutrinário ou normativo. Pois a cada gênero, emprega-se uma lógica. “É verdadeiramente inconcebível decidir o sentido do dito sem preestabelecer a origem do dito” (GUEDES, 2011), porém não há unanimidade entre os juristas, linguistas ou tradutores com relação à classificação dos discursos. Optamos por nos filiar a classificação os discursos jurídicos, empregada por Eduardo Bittar, como normativos, burocráticos, decisórios ou científicos.

Os discursos normativos, ou legislativos, são as leis, ou o “discurso dos legisladores”, que ante sua tarefa social que motiva a prática jurídica, possui marcas funcionais e estilísticas muito peculiares, que asseguram o caráter obrigatório da norma. Neles prevalece a função cogente, correspondendo às tarefas de comandar condutas, eleger valores preponderantes, recriminar ou estimular atividades. A sanção, seja ela permissiva ou proibitiva, emana de uma ordem prefixada no contexto da norma, que será variada pelas expressões funtoriais. Segundo Bittar, o termo funtor decorre da lógica e está unido à concepção de silogismo, inerente ao discurso jurídico. (BITTAR, 2009)

Como exemplo de discurso normativo, citamos:
 
“Art. 121. Matar alguém:
Pena - reclusão, de seis a vinte anos.”
(artigo 121 da Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940 - Código Penal[5])
 
“Art. 8° Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito.”
(artigo 8º da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 - Código de Defesa do Consumidor[6]).
 
“Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”
(artigo 2º da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil[7])

Quanto à personalidade jurídica, o artigo 30 do Código Civil espanhol, após a reforma de 2011, (Lei 20/2011, de 21 de julho), aproximou seu discurso normativo ao texto brasileiro:

Art. 30. La personalidad se adquiere en el momento del nacimiento con vida, una vez producido el entero desprendimiento del seno materno.”

Porém, em seu texto original, de 1889, direito espanhol exigia que o neonato tivesse forma humana e que vivesse no mínimo vinte e quatro horas para adquirir a personalidade civil. Regra que não encontra nenhuma similitude no direito brasileiro, tornando a tradução de textos relacionados à aquisição da personalidade civil e direito patrimonial um grande desafio. O Código Civil brasileiro não contempla requisitos da viabilidade da vida e forma humana. Nessa mesma linha está, todavia, o direito argentino (art. 70).

“Art. 30. Para los efectos civiles, sólo se reputará nacido el feto que tuviere figura humana y viviere veinticuatro horas enteramente desprendido del seno materno.
(Real Decreto de 24 de julio de 1889 por el que se publica el Código Civil[8]).

Os discursos decisórios são resumidos nas sentenças proferidas por órgãos coletivos ou individuais. Correspondem à atividade aplicativa de dirimir e concretizar os parâmetros normativos. Aproxima-se do meio social pela sua capacidade de transformação da realidade, “é capaz de modificar a situação jurídica de um sujeito, pelo simples fato de sua enunciação com caráter de publicidade e oficialidade” (BITTAR, 2009). É por meio do discurso decisório, portanto, que o magistrado aplica o texto normativo, norma imposta pelo legislador, à conduta praticada pelo cidadão.
 
Têm a função de uma regra que está amparada por outra regra: a legislação. Uma das marcas desse discurso é o raciocínio lógico, são as premissas que estabelecem os fatos da causa e a norma legal aplicável. A expressividade desse discurso tem o objetivo de se tornar “norma”, conforme ensina o Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Sua função é precipuamente decisória.

Nos discursos burocráticos o que prevalece é a função ordinatória, correspondendo às atividades de regularização, acompanhamento e impulso de procedimentos. A linguagem é institucionalizada e tem como protagonista o Estado. Uma das marcas destes discursos são a neutralidade, e a busca de isenção de interferências ideológicas. Em suma, é um texto posterior ao discurso normativo e anterior ao discurso decisório, com enunciados curtos, objetivos e de cunho informativo.

Já os discursos científicos tem a função cognitivo-interpretativa. É o discurso da teoria do direito: a doutrina. É científico porque envolve a ciência do direito, mas também é a opinião particular de um autor. Fundamenta-se na produção de um sentido jurídico, firmando teorias ou estabelecendo interpretações sobre a ciência do direito, mas não tem o objetivo de prescrever condutas. Na realidade, a doutrina tem a função de clarear e organizar o Direito, mas também têm como premissa persuadir (FERRAZ JÚNIOR, 1997). O discurso científico é fundamentalmente voltado para a crítica e compreensão dos discursos jurídicos.
 
Assim sendo, cada espécie de discurso jurídico tem suas regras de construção específicas, e na prática da tradução, é importante salientar os diferentes usos das regras particulares de cada discurso, aplicadas a cada sistema jurídico, e que são responsáveis pelo silogismo jurídico.

 
3. A Tradução Jurídica e o “Juridiquês” no Brasil

Como vimos, cada gênero de discurso jurídico é construído com base em uma lógica, tem suas regras de construção específicas e imposições ideológicas, mas também é feito com apoio em uma linguagem específica.

A linguagem jurídica do direito brasileiro é amplamente conhecida por sua imprecisão e abstração, é condenada por muitos por ser ultrapassada e desnecessária, pois dificulta a compreensão dos institutos e dos julgados, afastando cidadãos, e os próprios juristas, do real entendimento.

O Direito, como qualquer outra ciência, tem uma linguagem técnica peculiar, porém, o problema do "juridiquês" é que ele não se refere ao uso necessário de termos técnicos, mas sim na forma rebuscada utilizada, muitas vezes, pelo operador do Direito em seus textos, de forma que o excesso de linguagem técnica acaba sacrificando a clareza do discurso.

Observa-se que o “juridiquês” não surgiu por causa da linguagem técnica jurídica, não é um tecnicismo, mas é um produto do excesso de hermetismos na linguagem e na construção textual, que impedem a clareza jurídica e o acesso à Justiça e deve ser visto como um desvio da linguagem jurídica.

Expressões latinas como pacta sunt servanda, Ad argumentandum tantum, res in juditio deducta; arcaísmos como “cônjuge-varão”; termos técnicos como “dívida quesível”; abreviações como “P.R.I. – Publique-se, registre-se, intime-se”, usada nas sentenças, ou “que o d. Juízo de V.Exa. omitiu-se acerca do que deveria se pronunciar, d.m.v., como se sustenta nas razões que se seguem:” usada pelos advogados; fraseologia específica como “E, por estarem justos e acertados, firmam o presente instrumento, juntamente com as testemunhas, em quatro vias de igual teor, para todos os efeitos de direito.”, usada nos contratos, são frequentes. A complexidade e diversidade sintática, como a inversão dos termos da oração, e o formalismo exacerbado como “na esteira da preleção do ínclito e saudoso mestre...”), também fazem parte da teia de elementos que dificulta o entendimento do texto jurídico.

O ministro Edson Vidigal, do Superior Tribunal de Justiça, compara o “juridiquês” ao latim em missa, acobertando um mistério que amplia a distância entre a fé e o religioso; do mesmo modo, entre o cidadão e a lei, como bem lembra Darlan Alvarenga, repórter iG no Rio, em matéria escrita ao portal da AMB[9]. O uso da linguagem rebuscada, incompreensível para a maioria, seria também uma maneira de demonstração de poder e de manutenção do monopólio do conhecimento, continua.

Na mesma reportagem, Darlan Alvarenga destaca algumas das expressões constantes da cartilha da AMB[10]:

Autarquia anciliar: Instituto Nacional de Previdência Social

Cártula chéquica: folha de talão de cheque

“Com espeque no artigo...” ou “Com supedâneo no artigo...”: com base no artigo.

“O autor está eivado de razão”: com inteira razão (eivado: contaminado/ infectado)

Espórtula: gorjeta, donativo.

Digesto obreiro: Consolidação das Leis Trabalistas

Diploma provisório: medida provisória

Ergástulo público: cadeia

Exordial acusatória ou Peça increpatória: denúncia

Remédio heroico: mandado de segurança

Excelso, Excelso Sodalício, ou Egrégio Pretório Supremo: Supremo Tribunal Federal

Vistor ou “Expert": perito

Cônjuge sobrevivente ou consorte supérstite: viúvo

Alvazir: juiz de primeira instância

Testigo: testemunha

Caderno indiciário: inquérito policia.

A expressão técnica “Petição inicial”, que é a peça (ou texto) que dá início ao processo, e assim é chamada no texto legislativo (artigo 282 do Código de Processo Civil[11]), não raras vezes será referida como: peça autoral, peça de arranque, peça de ingresso, peça de introito, peça dilucular, peça exordial, peça inaugural, peça introdutória, peça preambular, peça prefacial, peça preludial, peça vestibular, e muitas outras expressões... E toda para dizer, simplesmente, “petição inicial”!

De nosso turno, acrescentamos: Aresto doméstico, para a jurisprudência de um Tribunal local; Consorte virago para a esposa; Repositório adjetivo para os códigos de processo, civil ou penal.

Veja, é notória a diferença entre “juridiquês” e linguagem técnica jurídica: ação, ação civil pública, arresto, arrazoar, alvará, alegações, autos, audiência de instrução e julgamento, arrolar testemunhas, averbação, bem de família, busca e apreensão, carta de sentença, carta precatória, citação, contestação, coisa julgada, etc. Todas são exemplos de linguagem técnica com a qual os operadores do direito devem lidar a todo momento, estão presentes nos discursos decisórios, legislativos, burocráticos e científicos.

Eduardo C. B. Bittar, em sua clássica obra sobre a Linguagem Jurídica, ainda na introdução diz que:

“Sob o título de Linguagem jurídica, propõe-se propriamente uma reavaliação do Direito, numa perspectiva teórico-semiótica, procedendo-se a um perscrutamento da juridicidade, o conjunto das práticas jurídicas de discurso. Trata-se de aplicar sobre o mundus iuris a metodologia de pensamento própria da ciência do sentido, a semiótica. Neste processo de investigação, dados históricos serão de extrema importância, noções teóricas serão de grande valia, tudo até que se possa apresentar solidez o objeto destas perquirições no campo jurídico: o conceito de juridicidade. Assim qual seja o papel e o campo do desenvolvimento de uma Semiótica Jurídica, é o que está a procurar e definir.”
(BITTAR, 2009)

Segundo Ailton Alfredo de Souza a linguagem jurídica é:

(...) dialeto sofisticado e pretensioso que se utiliza nos meios jurídicos, já chamado “juridiquês”, uma linguagem afetada, empolada, impenetrável, não raro ridícula, dos que supõem que utilizar expressões incomuns, exóticas, é sinal de cultura ou de sabedoria. O juridiquês, infelizmente, só tem mostrado eficiência e grande utilidade na perversa e estúpida missão de afastar o povo do Direito, de desviar a justiça do cidadão.
(SOUZA, 2005.)

Eros Grau (1988) entende que a justificativa para a linguagem jurídica é de que as leis devem ser gerais e abstratas, assim, as expressões jurídicas também são ambíguas e imprecisas, de forma a não possuírem um significado determinável. A particularidade dos conceitos jurídicos é que eles não são referidos a objetos, mas a significações. O objeto do conceito jurídico não existe "em si", são signos de atribuíveis a coisas, estados ou situações. Por essa razão, são termos indeterminados de conceitos e, lembrando o jurista e filósofo alemão Karl Larenz, diz que a linguagem jurídica deve ser considerada como “um jogo de linguagem” e o papel das palavras neste “jogo” não propriamente a definir algo, mas que “o papel delas no jogo de linguagem, nestas condições, só poderá ser desvendado na medida em que passemos a participar do mesmo jogo. Desta participação no jogo decorre a possibilidade de compreendermos a linguagem jurídica – tarefa que é instrumentada pela dogmática (...)” (GRAU, 1988).

Nesse mesmo sentido é a lição do professor Tércio Sampaio Ferraz, ao dizer que o correto entendimento do significado dos textos jurídicos, suas intenções, e o conteúdo de suas decisões constitui a tarefa da dogmática hermenêutica, e “o propósito básico do jurista não é simplesmente compreender um texto, mas também determinar-lhe a força e o alcance.” (FERRAZ JÚNIOR, 1997).

Apesar da tradição de hermetismo, a preocupação com a clareza e objetividade é uma realidade inquestionável, como mencionamos anteriormente com o combate entre os próprios magistrados de tal linguagem.

Outro aspecto linguístico e discursivo que causam grande dificuldade na tradução jurídica é o aspecto flutuante do significado das palavras devido à natureza das diferentes instituições (BOCQUET apud GUEDES, 2011).
 
Mesmo entre países que adotam o sistema romano-germânico como Brasil, Espanha e os países da América Latina de língua espanhola, os próprios conceitos jurídicos são diferentes entre as nações, o que aumenta a dificuldade na tradução por um equivalente adequado.
 
A prática do direito, assim como é hoje, foi estabelecida durante o Império Romano, quando o imperador Justiniano mandou elaborar o Codex com a reunião de várias leis promulgadas no seu governo. Em oposição à codificação, na Grécia, o discurso era oral, o domínio da retórica e da eloquência, contrapunha-se à complexidade do Direito Romano. Sob o império de Justiniano, os romanos codificaram o Direito, e para preparar uma defesa com os argumentos jurídicos era necessário um advocatus, que tinha o conhecimento de tais códigos.
 
Assim, ainda que pertençam ao mesmo sistema, há o aspecto flutuante do significado das palavras devido à natureza das diferentes instituições, os próprios conceitos jurídicos são diferentes entre as nações, o que aumenta a dificuldade na tradução por um equivalente adequado.

Em termos de tradução, desrespeitar o hermetismo, a complexidade sintática e o formalismo do discurso jurídico como estilo técnico, na tentativa de tornar o texto compreensível, pode mudar o nível de linguagem, o que significaria ferir a fidelidade ao texto original e ao autor. Ao tradutor cabe a transposição possível do discurso jurídico utilizando-se de critérios bem estabelecidos, além de conhecimento do percurso histórico das línguas de destino e alvo. A metodologia da tradução jurídica deve levar à elaboração de um discurso que seja o reflexo de uma prática cultural.

Sabemos que o tradutor encontra-se no entremeio entre o sujeito-emissor (autor do texto original) e o leitor final (sujeito-receptor), sendo que ele mesmo ocupa os dois lugares, ao inverso: começa como sujeito-receptor e passa para sujeito-emissor. No caso da tradução jurídica, o caminho de pedras torna-se ainda mais árduo; primeiramente, porque o seu leitor final será alguém com total domínio da matéria, sendo assim, um deslize será imediatamente identificado; em segundo lugar, porque o tradutor deve compreender o enunciado jurídico em seu contexto institucional (GUEDES, 2011).


4. Conclusões

Compreender a língua de um ponto de vista discursivo é ir além dos horizontes dados pela gramática. Nos discursos produzidos pelo homem está toda a sua história, aquilo que foi dito e foi silenciado. As relações de interação, de intercâmbio e também as relações de oposição, polêmicas e antagonismos estabelecidos. As relações de poder, de dominação, de alianças, de silenciamentos. (BRANDÃO, 2004).

Não há que se falar em linguagem jurídica estritamente precisa, pois assim não alcançaria seu objetivo precípuo. Ela sempre será marcada por figuras de linguagem, em que se destacam os graus de sentimento e de interesse no discurso. Daí a presença de inúmeros conceitos jurídicos indeterminados.

O discurso possui uma materialidade linguística e histórica. A história constitui-se no seu fator ideológico e não é algo externo que interfere no texto, já a sistematicidade linguística é a base material sobre a qual se produz o discurso. Assim o discurso é o lugar onde se miscigenam língua e história. O texto é a unidade de análise do discurso, é através dele que se chega à análise teórica do discurso.
 
Desta feita, pauta-se o discurso jurídico pela construção e elaboração, algo mais complexo e não apenas meramente retórico.


5. Referências

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__________________________________________________________________
[1] Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Tradução da Universidade Gama Filho como requisito parcial para a obtenção do grau de Especialização em Tradução de Espanhol. Orientadora: Profa. Dra. Meritxell Almarza Bosch.
[2] Aluna do curso de Pós-graduação em Tradução de Espanhol - Universidade Gama Filho - Rio de Janeiro/RJ. Graduada em Direito - UniAnchieta - Jundiaí/SP. Advogada. Especialista em Direito Civil - Escola Superior de Advocacia - São Paulo. renatacbmoreno@hotmail.com - vertendopalavras@blogspot.com.
[3] http://www.uc.pt/fduc/faculdade/a_nossa_historia/historia_1
[4] https://www.administraciondejusticia.gob.es
[5] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
[6] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm
[7] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm
[8] https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1889-4763&b=42&tn=1&p=18890725
[9] http://www.amb.com.br/?secao=mostranoticia&mat_id=1436
[10] idem
[11] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869.htm

Representar e verter, entender e manifestar


Escrito por Carol Almeida
Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco 
 
Em conversa com o Pernambuco, tradutores revelam pormenores de uma profissão em que ganha quem melhor conseguir entender o outro “TRADUZIR OU MORRER. A vida de toda criatura na Terra pode um dia depender da tradução instantânea e correta de uma palavra.” Paul Engle

Mensagens mal-interpretadas já criaram guerras, elegeram tiranos e, entre tantos casais dissolvidos em palavras, mataram Romeu e Julieta. Fazer-se entender é algo que está na premissa do ser humano, assim como a suscetibilidade ao não entendimento está cimentado na nossa mesma ideia de ser humano. De forma equivocada ou não, toda mensagem é silenciosa até o momento em que ela é decodificada. E na Babel de idiomas que o homem criou para se comunicar entre os seus, o tradutor literário tem a tarefa de, na penumbra, iluminar o silêncio entre os outros.

No Brasil, país colonizado com uma língua com sangue latino, os tradutores são e sempre foram fundamentais para o crescimento do volume de conhecimento que circula pelo nosso idioma poroso, aberto a influências tal qual um porto a receber mercadorias e, no entanto, bastante ciente das regras alfandegárias que delimitam seu domínio e sua força. Conversamos com três importantes tradutores brasileiros de perfis distintos e, não por isso, mais ou menos importantes para a circulação da literatura estrangeira: Eric Nepomuceno, Rosa Freire D’Aguiar e Renato Motta.

Com metodologias e valores próprios, eles são apenas alguns dos profissionais que alimentam o câmbio de histórias em um Brasil que reafirma sua língua quando um presidente da República sustenta o idioma materno se negando a ceder ao inglês das rodadas de negócios.


A lembrar que tradutores literários, assim com sobrenome, pois imbuídos da tarefa de revelar a mais complexa forma da língua – a escrita ficcional – são herdeiros de um ofício que, segundo os registros ocidentais, se inaugurou em 250 a.C., quando Lívio Andrônico traduziu para o latim a Odisséia, de Homero, escrita originalmente em dórico, um dos quatro principais dialetos da língua grega.


A despeito dessa largura histórica, a ideia do tradutor e toda a discussão sobre seu papel, bem como a criação de uma teoria da tradução, é um conceito recente, não apenas pós-Gutenberg, como pós-revolução industrial. Recente, mas ainda não recenseado. Mais de uma década depois que o mundo se acostumou a trocar ideias em tempo real pela internet, as teorias sobre envio e recepção de mensagens traduzidas dizem respeito a um mundo analógico, em que a experiência compartilhada dos elementos universais da linguagem se torna, simultaneamente, meio e mensagem, parte e todo.


O debate sobre literariedade, as nuances da sinonímia, a adaptação das sintaxes e o deslocamento contextual dos textos ganham agora um espaço de discussão mais amplo com os artifícios da ansiedade online. Ávidos e impacientes não exatamente por conteúdo, mas pela velocidade da informação em si, os que estão online praticam um constante exercício de tradução interlingual (entre línguas distintas) que ressalta cada vez mais a resposta aos significados do que aos significados propriamente ditos.

O importante para quem procura por uma tradução online e rápida da saga Crepúsculo, de Stephanie Meyer, não é o texto, mas sim a ideia dele. O mesmo acontece com as legendas online de vídeos ou com a simples troca de informações em fóruns de debate sobre qualquer produto de consumo. Seria aquilo que Michel Foucault discutiria ao contestar a noção tradicional de autor, sugerindo que se debatesse mais sua “função” que sua “autoria”.
Mas da mesma penumbra de onde interpretam, adaptam e muitas vezes reescrevem a palavra escrita, os tradutores literários podem adquirir um protagonismo atípico. É justamente em um momento de traduções disparadas na velocidade de um botão, ou criadas por jovens fãs com poucos anos de um curso particular de inglês, que o papel do tradutor e sua relação com a autoria revela que a invisibilidade desse trabalho pode até ser necessária, mas nunca será realmente invisível. Pois é com o surgimento de uma mecanicidade da tradução que a subjetividade da mesma ganha um valor inquestionável.


Com a palavra, os tradutores.

 

PALAVRAS DISTINTAS


Eric Nepomuceno é, além de tradutor, autor de vários títulos e desfruta de uma atípica amizade e contato direto com muitos dos autores que traduz (e que o traduzem). Rosa Freire D’Aguiar é um pilar referencial para a tradução de textos em francês e em espanhol no Brasil e acredita que, entre outros benefícios, a tradução pode evitar o falecimento precoce de línguas esquecidas. Renato Motta é conhecido por leitores de duas autoras best-sellers: Nora Roberts e Marian Keyes e, pelo volume de leitura que suas traduções têm, acumula uma rara experiência de contato direto com leitores.

Importante frisar que o trabalho de tradução no Brasil, embora tenha categoria própria na maior premiação literária do país, o Jabuti, ainda não tem os méritos que o trabalho encontra em outros países. Levando-se em conta que 80% da produção editorial no Brasil é de livros traduzidos, a remuneração, salvo casos de profissionais com reconhecimento já consolidado no mercado, ainda é ínfima (o Sindicato dos Tradutores sugere R$ 24 por lauda como piso, embora muitas editoras usem esse valor como teto) e fala-se agora em uma nova forma de remuneração em que o tradutor cederia os direitos autorais de sua tradução – sim, as traduções possuem direitos autorais próprios – para ganhar em cima da quantidade de livros vendidos. O que, na maioria dos casos, é uma grande desvantagem para o tradutor.


Os três tradutores com que conversamos respondem aqui a questões padrões que, ainda que não relacionadas diretamente com o trabalho da tradução, ajudam a perceber todos os valores subjetivos e, portanto, pouco mensuráveis em cálculos matemáticos, que cercam o exercício universal e “solitário”, como lembra Rosa Freire D’Aguiar, que envolve o processo de tradução.



COMO DESAPARECER


Eric Nepomuceno mora no nível do mar apenas nas terças e quartas-feiras. De quinta a segunda, sua residência é no topo da Serra da Estrela, por onde se entende a cidade de Petrópolis e onde ele desempenha uma atividade tão artesanal quanto a tradução: cozinhar. Costuma respeitar receitas de sua “pequena, mas consistente biblioteca culinária”, ainda que faça intervenções próprias no desenvolver do prato. E antes que se crie uma metáfora entre palavras e ingredientes, o escritor adverte: “Se for para traçar algum paralelo com tradução, não perca tempo”.


Portanto, eis então um currículo condensado do Nepomuceno das palavras: duas vezes premiado com o Jabuti de tradução, é conhecido como tradutor das referências da literatura hispânica: Gabriel García Márquez, Eduardo Galeano, Juan Rulfo, Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, entre outros. É também autor de 14 livros, entre romances, contos e ensaios e escreve para jornais (escreveu recentemente para este mesmo suplemento) do Brasil e d’além-mar.
Tradutor e traduzido, Nepomuceno circula com visto permanente entre os dois lados da fronteira dos idiomas português e espanhol, sendo um dos poucos tradutores a ter contato direto com um de seu mais ilustres “originais”, Gabriel García Márquez, além de ser amigo também de quem já o traduziu. Chama esses laços de uma “espécie de máfia afetiva” que, no entanto, não pressupõe o contato direto entre autor e tradutor durante o processo de tradução. Nepomuceno garante que o contato, enquanto no trabalho de tradução, é mínimo.


Qual o primeiro livro que você leu ciente de que estava tendo uma experiência inédita de leitura?

Não sei dizer. Certamente os livros da infância, que tiveram um impacto enorme –  Monteiro Lobato, e também Tarzan, As aventuras do Barão de Münchausen, Tom Sawyer, As Viagens de Marco Polo... Mas claro que não tinha ciência de que estava tendo essa experiência. Acho que só mais tarde, na adolescência, principalmente com Hemingway, os contos de Sartre, e Dostoiévski, mas tampouco acho que li sabendo que era uma experiência inédita. Depois de ter lido é que percebi até que ponto o chão tinha mexido debaixo dos meus pés. Mais tarde vieram outros, é claro. A lista seria extensa demais. Mas a pergunta é complexa: quando você percebe, pela primeira vez, que está lendo alguma coisa que pode mudar sua maneira de ver o mundo? Volto ao que disse: na infância. Só que eu não sabia, vim, a saber, mais tarde.


Os livros podem fazer pessoas melhores?


Só a vida pode, e isso quando consegue fazer as pessoas melhorarem. Os livros não mudam o mundo. Mudam a nossa maneira de ver a vida e o mundo. E já é muito. Há livros e livros que não mudaram a história, mas ajudaram as pessoas a mudar sua visão de mundo e de vida e, portanto, a partir deles, tentar mudar a história. Mas nem mesmo esses livros fizeram com que essas pessoas fossem melhores. Apenas ajudaram.


Como é a organização dos seus livros?


Não tem catalogação nenhuma. Organizo em estantes, isso sim, de tal forma que sempre sei onde está cada um deles – ou acho que sei. Vai por estantes e, em cada uma delas, por país, e dentro de cada país, por autor. Não-ficção, vai por temas. E tem a seção policial, e a de biografias, e mais teatro, poesia, temas vários, etc., etc... Dito assim, parece muito organizado, mas não é. Afinal, são mais de quatro mil exemplares... Ah, sim: na estante que fica exatamente em frente da mesa de trabalho, tenho meu altar particular. Afetos especiais, admirações isoladas (não significa necessariamente os que acho melhores, mas os que me fazem sentir diretamente vinculados a eles, por razões afetivas ou literárias): Hemingway, Fitzgerald, Carver, Onetti, Carlos Fuentes, García Márquez, Cortázar, Rulfo, Salinger, Galeano. E, em outra estante, a egoteca, uma categoria que aprendi visitando a casa de Mario Vargas Llosa em Lima, em 1975: tudo que escrevi, tudo que traduzi. Ele tinha uma. Só que a minha não está perto de mim. Fica bem longe do meu raio de visão. Na casa de Petrópolis, na serra perto do Rio, e onde passo de quinta a segunda, outro altar: Darcy Ribeiro, o poeta argentino Juan Gelman, o historiador mexicano Fernando Benítez, Antonio Callado, Checov, e por aí vai. É uma organização muito particular.  

Existem diferenças de temperaturas entre as línguas?


Confesso que nunca pensei a partir desse ponto de vista. Assim de supetão, acho, por exemplo, o castelhano mais árido – e talvez contundente – que o português, que é bem mais suave, doce e melancólico. Mas nem por isso mais frio que o castelhano ou o francês ou o inglês ou o italiano... E já que falamos em idiomas: acho que o melhor idioma para prosa é o inglês. O mais conciso, o mais preciso. Para poesia, nessa ordem, o castelhano, o português, o italiano, o francês. Mas claro que não tenho nenhuma base teórica para o que estou dizendo. É pura intuição, é só o que sinto. No meu caso pessoal, os poucos contos que foram traduzidos para o inglês me pareceram mais próximos do que eu quis dizer, exatamente pela concisão, pela precisão. Já outros, traduzidos ao castelhano, se aproximam mais de como foram escritos, talvez por terem sido vividos, imaginados, em castelhano, embora nascidos em português, o único idioma em que escrevo meus contos... Enfim, qual o idioma mais quente? Aquele que expressa a verdade do autor. Que expõe sua alma. Escrever é isso: se revelar, buscar um encontro, um diálogo, uma comunhão. Esse é o único idioma quente, quando verdadeiro.


Já visitou algum país em que desconhecia completamente a língua nativa?


Ah, vários... Países exóticos, como Dinamarca, Suécia, Holanda, Alemanha, Argélia, Marrocos, o Saara Ocidental... se bem que, nesses três últimos, fala-se francês ou espanhol. Argélia, Marrocos, Saara Ocidental, Suécia e Dinamarca, por trabalho. Gostei muito, mas não moraria em nenhum deles. Holanda, para ver amigos, nos tempos em que havia exilados latino-americanos. Também gostei muito, e também não moraria lá. Morei, aos meus dez anos, na Alemanha. Voltei duas vezes. Não entendia patavina. A memória não guardou nada do idioma, e os alemães, principalmente das cidades menores, têm uma birra danada, insistem em fingir que não entendem inglês. Aí, fica complicado. Ah, sim: a primeira vez, voltei para ver o cenário de uma parte marcante da minha infância. Puro turismo, digamos. A segunda, para participar de um seminário importante, e justamente numa cidade onde morei menino, Göttingen. Foi muito emocionante voltar, apesar de não conseguir me fazer entender na hora de comprar pasta de dentes...

Bons tradutores precisam ser invisíveis?


Detesto filme dublado. Tradução em que o tradutor aparece é a mesma coisa: acho uma violência traduções com notas de pé de página, mesóclises, essas coisas todas feitas para demonstrar erudição e que violam o texto original. Boa tradução é aquela que você não percebe que é tradução. Todo meu esforço é sumir, é  fazer com que o leitor ache que está lendo um livro que foi escrito no português do Brasil. Estranho trabalho, esse: fazer de tudo para que ninguém perceba o que foi feito...


O que não é  passível de tradução?


Não sei. Poesia, talvez. A menos que traduzida por outro poeta. Mas tudo é traduzível, desde que não assassine a obra original. Pense bem: se não fossem as traduções, o mundo não conheceria maravilhas. Então, tudo é  traduzível, desde que o trabalho seja bem feito, com seriedade.

SOBRE A NEVE DE PARIS.


Todo fim de ano Rosa Freire D’Aguiar faz seu movimento migratório e cruza o Oceano Atlântico para fugir do verão carioca. Prefere a neve do inverno parisiense, onde ela tem casa, amigos, história. A tradutora que se transformou em uma referência nacional, tanto entre tradutores e acadêmicos que estudam a tradução, pode agora se dar ao luxo de trabalhar com obras mais refinadas e, volta e meia, sugerir alguns livros para a editora, neste caso, a Companhia das Letras.

No seu currículo tem traduções de autores do porte de Ernesto Sábato, Manuel Vázques Montalbán e Louis-Ferdinand Céline. Sim, ela traduz do espanhol e do francês para o português. Recentemente, traduziu um best-seller internacional, A elegância do ouriço, de Muriel Barbery (bem como A morte do gourmet, da mesma autora).


Casada por 25 anos com a maior referência na reflexão da economia brasileira, Celso Furtado, que faleceu em 2004, Rosa exerce também o papel de diretora cultural do Centro Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento e sua vivência e posição de observadora dos debates sociais, econômicos e culturais faz dela alguém que, por sua leitura e viagens, sabe que a tradução pode ajudar a dar sobrevida a línguas que, segundo a UNESCO, morrem anualmente por falta de documentos traduzidos. “O Paraguai tem um programa para traduzir vários documentos para o guarani e isso é importante porque forma pessoas interessadas em traduzir o guarani e, com isso, não deixa a língua morrer. Acho que seria importante traduzir obras importantes para as grandes línguas indígenas. Por que os índios no Brasil não podem ler Machado de Assis na língua deles? É claro que precisa se fixar a língua, mas por que não?”

Qual o primeiro livro que você leu ciente de que estava tendo uma experiência inédita de leitura?

Lembro-me perfeitamente, quando eu era criança li um livro chamado Cazuza, do Viriato Correia, acho que ninguém mais lembra dele, mas ele era um escritor muito conhecido. O Cazuza era um menininho que viajava pelo Brasil. Era uma forma de você conhecer o Brasil através das viagens do Cazuza. Eu fiquei tão maravilhada, não sei que idade eu tinha, 8 ou 7 anos, mas acho que fiquei maravilhada com o livro e com o Brasil.


Os livros podem fazer pessoas melhores?


Melhor, não sei. Eu já fiz o teu papel, eu era jornalista antes e entrevistei muito escritor aqui na França e pra todos eles eu fazia uma pergunta mais ou menos parecida. E nenhum deles acreditava no poder da literatura. Fiz essa pergunta pro Jorge Simenon, Ernesto Sábato, Julio Cortázar e todos eles disseram que não. Agora acho que com os livros as pessoas ficam mais conscientes. Lembro muito bem do Cortázar falando que nunca um livro derrubou um tirano, mas acho que ele ajuda. Digamos que o livro faz um trabalho de colocar a picareta embaixo do pedestal e vai enfraquecendo.


Quais são as grandes virtudes e particularidades da língua francesa e do português?


O que do francês eu acho bonito, e que ao mesmo tempo atrapalha o tradutor, é a pouca flexibilidade da língua, ela é muito rígida. Costuma-se dizer que ela é uma língua muito apolínea e o português seria uma língua mais dionisíaca. Acredito que o português, assim como o espanhol, tem mais nuances, mais cores. Em compensação, o francês, já em função um pouco de um comportamento cartesiano dos franceses, tem palavra pra tudo. Vou te contar uma bobagem, só pra exemplificar: eu cheguei muito jovem na França, já falando francês. Mas o meu francês era muito clássico, a língua do dia a dia eu não tinha. E aí fui ver um apartamento pra alugar, a moça da agência me deu a chave do apartamento, ele estava vazio, e ela me disse: veja se tem alguma coisa quebrada, quando você chegar, me diz. E a tampa da privada estava quebrada. Eu não sabia como se dizia tampa da privada, mas cheguei lá e me fiz entender.  Mas aí a moça disse: qual das duas tampas? Ou seja, uma língua que tem duas palavras, uma para a tampa em que você senta e outra para a que cobre a privada, é  uma língua alucinante. Esse é um rigor bonito, certamente, mas para traduzir é mais difícil porque ele não tem o jogo de cintura que a gente tem, nossa língua é mais barroca, dá mais voltas. De qualquer forma, é uma tradução boa de se fazer, o que não acontece quando se traduz livros do português para o francês. Já fiz isso algumas vezes e é uma catástrofe. Porque em boa parte das vezes a pessoa não sabe o que quer dizer em português. A clareza de mente do brasileiro ainda deixa muito a desejar, digo isso mais em relação aos textos atuais.


Já visitou algum país em que desconhecia completamente a língua nativa?


Já e foi assustador, é  horrível. Mas quando eu visitei esses países eu não era tradutora, era jornalista. Com inglês, de modo geral, mas de modo bem geral mesmo, a gente se vira. Mas quando fui à China, em 1980, com o Celso (Furtado). Ninguém falava nada, de língua nenhuma, era muito antes dessa abertura, todo mundo ainda vestido com aquelas túnicas Mao. Agora, em Xangai, que era um porto grande e havia tido alguma influência ocidental no século 19, havia alguns jovens que falavam algumas poucas palavrinhas em inglês. E se não fosse por eles e essas poucas palavras, nós não saberíamos muita coisa que era proibido se saber. Mas é aflitivo.

Como é a organização dos seus livros?


Muito organizados. Aqui na França o grande auê eram os livros do Celso (Furtado). Esses livros eu levei pro Brasil, tirei 2300 livros daqui, e quando olho pra minha casa aqui, que é pequena, fico besta em como cabia tanto livro. Deixeis aqui alguns ensaios e livros mais ligados à cultura, ciências humanas, literatura sul-americana. Mas é tudo organizado. Não tem nada a ver com a lógica das bibliotecárias, mas na minha lógica eu sei direitinho onde está tudo. Se você quiser, posso ligar pra minha empregada e dizer pra ela exatamente onde está um livro tal e ela pega pra mim.

Qual o livro de tradução mais difícil até hoje?


Foram os do (Louis-Ferdinand) Céline. Achei que era o primeiro, mas depois traduzi um outro dele e foi um trabalho do cão. O Céline é difícil em francês e muito difícil de restituir em português. Porque tem muita gíria, muita palavra e construção inventada. Tem gente que diz: ah, é impossível traduzir, mas não é não. Tudo é possível traduzir. Não acredito nessa história de que exista algo impossível de traduzir, às vezes você precisa fazer uma passagem. Mas não é e nem deve ser impossível de se traduzir qualquer texto.



SE O BOLO É BOM, QUAL O PROBLEMA?


São centenas de milhares de pessoas que viram a página onde se imprime o nome de Renato Motta. Tradutor de autores responsáveis por gordos números de venda, tais como as escritoras Nora Roberts e Marian Keyes, Motta tem um contato mais próximo com os leitores que, mais atentos, conseguem prestar atenção no seu nome mesmo que induzidos ao hipnotismo das fontes gigantes dos autores de best-sellers.


Segundo ele, “é muito difícil que um leitor tenha lido o livro em inglês e vá conversar com o tradutor sobre sua tradução. O que toca mais o leitor é a fluência do texto. Quando ele flui, o leitor acha que é uma tradução boa. Mas quando você traduz um livro, é preciso entender que você trabalha com escolhas. Lembro de estar numa convenção sobre tradução uma vez e uma pessoa caiu de pau na Lia Wyler (tradutora da saga Harry Potter). Isso porque o personagem de Hagrid, no texto original, ele fala tudo errado em inglês, porque é um cara humilde e tal. E na tradução em português ele fala sem erros. A Lia Wyler estava na convenção e se defendeu justificando que aquilo foi uma escolha dela, pois, em sua concepção, para um livro infanto-juvenil, ela achou que faria mal em escrever palavras erradas.” (Nota da edição: tentamos uma entrevista com a tradutora Lia Wyler, mas sua editora, a Rocco, informou que ela não mais conversa com a imprensa).


Professor de inglês em uma escola particular, Motta sabe também que, além de todos os benefícios de velocidade e conteúdo online que a internet disponibiliza, é  também cada vez mais fácil para jovens estudantes de línguas estrangeiras, particularmente do inglês, tomarem a iniciativa de traduzirem textos que, nas mãos de um profissional, levam um tempo maior para chegar às livrarias. No entanto, ele reafirma que de nenhuma maneira, até onde sua experiência com o mercado vai hoje, isso desestimula a compra dos livros que já foram disponibilizados, em traduções amadoras, pela internet.


Qual o primeiro livro que você leu ciente de que estava tendo uma experiência inédita de leitura?


O Fim da Infância, de Arthur C. Clarke, foi um livro importante para a minha formação de leitor, pois fala de uma sociedade utópica criada na Terra por extraterrestres e de como seria a evolução da raça humana num mundo perfeito. Curiosamente, não sou fã de ficção científica, mas esse livro me mostrou a riqueza do pensamento humano. Como tradutor, a obra que abriu minha mente para as infinitas possibilidades do mundo tradutório foi As brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, na impecável tradução de Waltensir Dutra. Esse livro me mostrou que as mulheres têm uma visão específica das coisas, e ela complementa o olhar masculino que foi imposto ao mundo através dos séculos. Os avanços da sociedade moderna têm muito a ver com a visão feminina, que vem sendo mais valorizada nas últimas décadas. Esse tema me interessa tanto que pretendo, um dia, escrever um livro sobre o assunto. Curiosamente, isso também se mostrou utilíssimo no meu trabalho como tradutor de duas das mais importantes autoras da atualidade.

Os livros podem fazer pessoas melhores?


Certamente. Os livros trazem para os leitores a possibilidade de conhecer outros lugares, outras ideias, outras culturas, outras vidas, outras realidades. Toda forma de arte torna as pessoas melhores, mas a literatura talvez seja a mais abrangente e completa das artes, pois cria um vínculo pessoal entre o autor e o leitor. 


Quais são as grandes virtudes e particularidades da língua portuguesa?


A suavidade das palavras torna as línguas latinas (e o português em especial)
, idiomas musicais. As línguas anglo-saxônicas, nórdicas e eslavas são mais guturais, o que as torna “ásperas” aos ouvidos. A estrutura da língua portuguesa, por sua vez, é muito complexa. A gramática é difícil, os verbos têm múltiplas flexões e os objetos inanimados têm gênero. Para um alemão é difícil entender por que “trem”, “balde” e “mar” são masculinos, “parede” e “viagem” são femininos e a palavra “grama” existe nos dois gêneros.

Que palavra(s) (ou particularidade gramatical) mais te intriga na língua inglesa?


O inglês me fascina, entre outras coisas, pela quantidade imensa de vocábulos. A língua inglesa tem pelo menos duas vezes mais palavras do que a língua portuguesa. As pessoas costumam dizer que há vocábulos (como “saudade”) que só existem em português. Na verdade, há um número muito maior de palavras que só existem em inglês e, para traduzi-las, é necessário formar uma frase inteira em nosso idioma. Outra coisa fascinante no inglês é que muitas palavras emulam o som do que elas representam. É o caso de colidir (“crash”), mergulhar espalhando água (“splash”), espirrar (“sneeze”). Não temos isso em nosso idioma. Quanto às particularidades, uma das palavras da língua inglesa que eu mais aprecio é “flabbergasted” (pasmo). Além de ser sonora, ela possui um componente de indignação que não encontramos nas suas traduções possíveis para o português.


Como é a organização dos seus livros?


Não organizo nada e já cheguei ao cúmulo de comprar livros em duplicidade por não lembrar que já  possuía determinado título. Os livros em minha casa são separados pela altura, para melhor distribuição nas estantes. Tento reuni-los por autor, mas sem ordem alfabética. Tenho tantos livros que os guardo em todos os cômodos da casa, até nos maleiros dos quartos e na parte de cima do armário da cozinha.


Já visitou algum país em que desconhecia completamente a língua nativa?


Sempre fico perdido nos países da Escandinávia. Felizmente, quase todo mundo fala inglês por lá. Uma vez, na Suíça, no zoológico de Zurique, fui avisar ao tratador que alguns macacos estavam se matando. Perguntei se ele falava inglês, mas o rapaz só falava alemão, francês e italiano. Conseguimos nos entender por gestos, mas foi um momento tenso. É um ótimo exercício de humildade visitar um país sem conhecer uma única palavra do idioma.

Bons tradutores precisam ser invisíveis?

Depende. Você não pode colocar no texto uma referência brasileira específica em um livro irlandês, porque o leitor se sentirá traído. Nesse ponto, o tradutor é semelhante ao juiz de futebol. Se ele aparecer demais, é sinal de que está fazendo um mau trabalho. Por outro lado, um diálogo montado à base de trocadilhos, por exemplo, torna explícita a presença do tradutor. Nesse caso, porém, a atuação deve ser mínima. O leitor saberá que houve uma adaptação, mas entenderá sua necessidade, não se sentirá traído e, se for esperto, reconhecerá a qualidade do trabalho.
O que não é passível de tradução?

Trocadilhos são impossíveis de traduzir ao pé da letra, mas podem (e devem) ser adaptados pelo tradutor. É um desafio fabuloso e um excelente exercício de criatividade e competência.

Você tem um imenso currículo de best-sellers traduzidos. Após a leitura de tantos, dá pra identificar elementos de interseção entre enredos campeões de venda?

Para ser um campeão de vendas, em qualquer lugar do mundo, um livro deve ter uma história envolvente e simples, mas com uma trama bem tecida. Os críticos reclamam que os best-sellers seguem uma receita de bolo, mas nenhum deles consegue produzir um grande sucesso literário, embora muitos sonhem com isso a vida inteira. Se o bolo é gostoso, qual é o problema? Um livro cativante e bem escrito é uma obra de arte, sim senhor! Aqui no Brasil nós temos um problema grave: os cadernos literários dos grandes jornais quase nunca fazem resenhas de livros que vendem muito. Eles os ignoram solenemente. A elite intelectual brasileira desdenha Dan Brown e Nora Roberts, mas os lê debaixo das cobertas, antes de dormir. Isso é uma aberração, uma hipocrisia. Um bom livro, como um bom filme ou uma boa peça de teatro, não precisa exibir acrobacias estilísticas para demonstrar valor. Há livros que foram feitos para entreter, e não há nada de errado nisso. Eu criei o termo “livro-pipoca” para me referir, de forma carinhosa, aos livros que são gostosos de ler deitado numa rede, numa praia durante as férias, no metrô, ou antes, de ir para a cama. “Nem só de caviar vive o homem”, como já dizia Simmel. Livros populares, desde que bem escritos e bem traduzidos, servem para aumentar a base de leitores, e todo mundo sai ganhando. Só falta combinar isso com os editores dos cadernos literários.
 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Venha ver o pôr do sol


Lygia Fagundes Telles
Antes do Baile Verde - ed. Companhia das Letras
 
Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.

Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante.

Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.

- Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que ideia, Ricardo, que ideia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima.

Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.

- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância me aparece nessa elegância...Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas, lembra?

- Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui?- perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro.- Hem?!

- Ah, Raquel...- e ele tomou-a pelo braço rindo.

- Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado...Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal?

- Podia Ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério?

Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.

- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivo e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. - Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o programa?

Brandamente ele a tomou pela cintura.

- Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.

Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.

- Ver o pôr do sol!...Ah, meu Deus...Fabuloso, fabuloso!...Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério...

Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.

- Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura...

- E você acha que eu iria?

- Não se zangue, sei que eu iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada...- disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com s pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento –Você fez bem em vir.

- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?

- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.

- Mas eu pago.

- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.

Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.

- Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.

- Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.

- É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.

- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo...

O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de Ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.

- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.

- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.

- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.

Delicadamente ele beijou-lhe a mão.

- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.

- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.

- Ele é tão rico assim?

- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...

Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorrisso reapareceu e as rugazinhas sumiram.

- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?

Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.

- Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã...Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como agüentei tanto, imagine um ano...

- É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?

- Nenhum- respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: "À minha querida esposa, eternas saudades" - leu em voz baixa. Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade.

Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.

Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.

Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.

- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face.- Chega Ricardo, quero ir embora.

- Mais alguns passos...

- Mas este cemitério não acaba
mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.

- A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: - Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. T
ínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.

- Sua prima também?

- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos...Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas...Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.

- Vocês se amaram?

- Ela me amou. Foi a única criatura que...- Fez um gesto. – Enfim não tem importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o.

- Eu gostei de você, Ricardo.

- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?

Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.

- Esfriou, não? Vamos embora.

- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.

Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.

Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.

- Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?

Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.

- Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo?

- Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.

Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.

- E lá embaixo?

- Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa?

Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.

- Todas estas gavetas estão cheias?

- Cheias?...- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.

Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.

- Vamos, Ricardo, vamos.

- Você está com medo?

- Claro que não estou. Suba e vamos embora, estou com frio!

Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:

- A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo se exibir, estou bonita? Estou bonita?...- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos...Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.

Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.

- Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando...

Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.

- Pegue, dá para ver muito bem...- Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.

- Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça...
 
Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente: "Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida...". Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel.
 
– Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti...

Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.

- Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?

Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.

- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!

- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo.

Ela sacudia a portinhola.

- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!- Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso.- Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...

Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.

- Boa noite, Raquel.

- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!...- gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.- Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.

- Não, não...

Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.

- Boa noite, meu anjo.

Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.

- Não...

Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:

- Não!

Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.