quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Representar e verter, entender e manifestar


Escrito por Carol Almeida
Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco 
 
Em conversa com o Pernambuco, tradutores revelam pormenores de uma profissão em que ganha quem melhor conseguir entender o outro “TRADUZIR OU MORRER. A vida de toda criatura na Terra pode um dia depender da tradução instantânea e correta de uma palavra.” Paul Engle

Mensagens mal-interpretadas já criaram guerras, elegeram tiranos e, entre tantos casais dissolvidos em palavras, mataram Romeu e Julieta. Fazer-se entender é algo que está na premissa do ser humano, assim como a suscetibilidade ao não entendimento está cimentado na nossa mesma ideia de ser humano. De forma equivocada ou não, toda mensagem é silenciosa até o momento em que ela é decodificada. E na Babel de idiomas que o homem criou para se comunicar entre os seus, o tradutor literário tem a tarefa de, na penumbra, iluminar o silêncio entre os outros.

No Brasil, país colonizado com uma língua com sangue latino, os tradutores são e sempre foram fundamentais para o crescimento do volume de conhecimento que circula pelo nosso idioma poroso, aberto a influências tal qual um porto a receber mercadorias e, no entanto, bastante ciente das regras alfandegárias que delimitam seu domínio e sua força. Conversamos com três importantes tradutores brasileiros de perfis distintos e, não por isso, mais ou menos importantes para a circulação da literatura estrangeira: Eric Nepomuceno, Rosa Freire D’Aguiar e Renato Motta.

Com metodologias e valores próprios, eles são apenas alguns dos profissionais que alimentam o câmbio de histórias em um Brasil que reafirma sua língua quando um presidente da República sustenta o idioma materno se negando a ceder ao inglês das rodadas de negócios.


A lembrar que tradutores literários, assim com sobrenome, pois imbuídos da tarefa de revelar a mais complexa forma da língua – a escrita ficcional – são herdeiros de um ofício que, segundo os registros ocidentais, se inaugurou em 250 a.C., quando Lívio Andrônico traduziu para o latim a Odisséia, de Homero, escrita originalmente em dórico, um dos quatro principais dialetos da língua grega.


A despeito dessa largura histórica, a ideia do tradutor e toda a discussão sobre seu papel, bem como a criação de uma teoria da tradução, é um conceito recente, não apenas pós-Gutenberg, como pós-revolução industrial. Recente, mas ainda não recenseado. Mais de uma década depois que o mundo se acostumou a trocar ideias em tempo real pela internet, as teorias sobre envio e recepção de mensagens traduzidas dizem respeito a um mundo analógico, em que a experiência compartilhada dos elementos universais da linguagem se torna, simultaneamente, meio e mensagem, parte e todo.


O debate sobre literariedade, as nuances da sinonímia, a adaptação das sintaxes e o deslocamento contextual dos textos ganham agora um espaço de discussão mais amplo com os artifícios da ansiedade online. Ávidos e impacientes não exatamente por conteúdo, mas pela velocidade da informação em si, os que estão online praticam um constante exercício de tradução interlingual (entre línguas distintas) que ressalta cada vez mais a resposta aos significados do que aos significados propriamente ditos.

O importante para quem procura por uma tradução online e rápida da saga Crepúsculo, de Stephanie Meyer, não é o texto, mas sim a ideia dele. O mesmo acontece com as legendas online de vídeos ou com a simples troca de informações em fóruns de debate sobre qualquer produto de consumo. Seria aquilo que Michel Foucault discutiria ao contestar a noção tradicional de autor, sugerindo que se debatesse mais sua “função” que sua “autoria”.
Mas da mesma penumbra de onde interpretam, adaptam e muitas vezes reescrevem a palavra escrita, os tradutores literários podem adquirir um protagonismo atípico. É justamente em um momento de traduções disparadas na velocidade de um botão, ou criadas por jovens fãs com poucos anos de um curso particular de inglês, que o papel do tradutor e sua relação com a autoria revela que a invisibilidade desse trabalho pode até ser necessária, mas nunca será realmente invisível. Pois é com o surgimento de uma mecanicidade da tradução que a subjetividade da mesma ganha um valor inquestionável.


Com a palavra, os tradutores.

 

PALAVRAS DISTINTAS


Eric Nepomuceno é, além de tradutor, autor de vários títulos e desfruta de uma atípica amizade e contato direto com muitos dos autores que traduz (e que o traduzem). Rosa Freire D’Aguiar é um pilar referencial para a tradução de textos em francês e em espanhol no Brasil e acredita que, entre outros benefícios, a tradução pode evitar o falecimento precoce de línguas esquecidas. Renato Motta é conhecido por leitores de duas autoras best-sellers: Nora Roberts e Marian Keyes e, pelo volume de leitura que suas traduções têm, acumula uma rara experiência de contato direto com leitores.

Importante frisar que o trabalho de tradução no Brasil, embora tenha categoria própria na maior premiação literária do país, o Jabuti, ainda não tem os méritos que o trabalho encontra em outros países. Levando-se em conta que 80% da produção editorial no Brasil é de livros traduzidos, a remuneração, salvo casos de profissionais com reconhecimento já consolidado no mercado, ainda é ínfima (o Sindicato dos Tradutores sugere R$ 24 por lauda como piso, embora muitas editoras usem esse valor como teto) e fala-se agora em uma nova forma de remuneração em que o tradutor cederia os direitos autorais de sua tradução – sim, as traduções possuem direitos autorais próprios – para ganhar em cima da quantidade de livros vendidos. O que, na maioria dos casos, é uma grande desvantagem para o tradutor.


Os três tradutores com que conversamos respondem aqui a questões padrões que, ainda que não relacionadas diretamente com o trabalho da tradução, ajudam a perceber todos os valores subjetivos e, portanto, pouco mensuráveis em cálculos matemáticos, que cercam o exercício universal e “solitário”, como lembra Rosa Freire D’Aguiar, que envolve o processo de tradução.



COMO DESAPARECER


Eric Nepomuceno mora no nível do mar apenas nas terças e quartas-feiras. De quinta a segunda, sua residência é no topo da Serra da Estrela, por onde se entende a cidade de Petrópolis e onde ele desempenha uma atividade tão artesanal quanto a tradução: cozinhar. Costuma respeitar receitas de sua “pequena, mas consistente biblioteca culinária”, ainda que faça intervenções próprias no desenvolver do prato. E antes que se crie uma metáfora entre palavras e ingredientes, o escritor adverte: “Se for para traçar algum paralelo com tradução, não perca tempo”.


Portanto, eis então um currículo condensado do Nepomuceno das palavras: duas vezes premiado com o Jabuti de tradução, é conhecido como tradutor das referências da literatura hispânica: Gabriel García Márquez, Eduardo Galeano, Juan Rulfo, Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, entre outros. É também autor de 14 livros, entre romances, contos e ensaios e escreve para jornais (escreveu recentemente para este mesmo suplemento) do Brasil e d’além-mar.
Tradutor e traduzido, Nepomuceno circula com visto permanente entre os dois lados da fronteira dos idiomas português e espanhol, sendo um dos poucos tradutores a ter contato direto com um de seu mais ilustres “originais”, Gabriel García Márquez, além de ser amigo também de quem já o traduziu. Chama esses laços de uma “espécie de máfia afetiva” que, no entanto, não pressupõe o contato direto entre autor e tradutor durante o processo de tradução. Nepomuceno garante que o contato, enquanto no trabalho de tradução, é mínimo.


Qual o primeiro livro que você leu ciente de que estava tendo uma experiência inédita de leitura?

Não sei dizer. Certamente os livros da infância, que tiveram um impacto enorme –  Monteiro Lobato, e também Tarzan, As aventuras do Barão de Münchausen, Tom Sawyer, As Viagens de Marco Polo... Mas claro que não tinha ciência de que estava tendo essa experiência. Acho que só mais tarde, na adolescência, principalmente com Hemingway, os contos de Sartre, e Dostoiévski, mas tampouco acho que li sabendo que era uma experiência inédita. Depois de ter lido é que percebi até que ponto o chão tinha mexido debaixo dos meus pés. Mais tarde vieram outros, é claro. A lista seria extensa demais. Mas a pergunta é complexa: quando você percebe, pela primeira vez, que está lendo alguma coisa que pode mudar sua maneira de ver o mundo? Volto ao que disse: na infância. Só que eu não sabia, vim, a saber, mais tarde.


Os livros podem fazer pessoas melhores?


Só a vida pode, e isso quando consegue fazer as pessoas melhorarem. Os livros não mudam o mundo. Mudam a nossa maneira de ver a vida e o mundo. E já é muito. Há livros e livros que não mudaram a história, mas ajudaram as pessoas a mudar sua visão de mundo e de vida e, portanto, a partir deles, tentar mudar a história. Mas nem mesmo esses livros fizeram com que essas pessoas fossem melhores. Apenas ajudaram.


Como é a organização dos seus livros?


Não tem catalogação nenhuma. Organizo em estantes, isso sim, de tal forma que sempre sei onde está cada um deles – ou acho que sei. Vai por estantes e, em cada uma delas, por país, e dentro de cada país, por autor. Não-ficção, vai por temas. E tem a seção policial, e a de biografias, e mais teatro, poesia, temas vários, etc., etc... Dito assim, parece muito organizado, mas não é. Afinal, são mais de quatro mil exemplares... Ah, sim: na estante que fica exatamente em frente da mesa de trabalho, tenho meu altar particular. Afetos especiais, admirações isoladas (não significa necessariamente os que acho melhores, mas os que me fazem sentir diretamente vinculados a eles, por razões afetivas ou literárias): Hemingway, Fitzgerald, Carver, Onetti, Carlos Fuentes, García Márquez, Cortázar, Rulfo, Salinger, Galeano. E, em outra estante, a egoteca, uma categoria que aprendi visitando a casa de Mario Vargas Llosa em Lima, em 1975: tudo que escrevi, tudo que traduzi. Ele tinha uma. Só que a minha não está perto de mim. Fica bem longe do meu raio de visão. Na casa de Petrópolis, na serra perto do Rio, e onde passo de quinta a segunda, outro altar: Darcy Ribeiro, o poeta argentino Juan Gelman, o historiador mexicano Fernando Benítez, Antonio Callado, Checov, e por aí vai. É uma organização muito particular.  

Existem diferenças de temperaturas entre as línguas?


Confesso que nunca pensei a partir desse ponto de vista. Assim de supetão, acho, por exemplo, o castelhano mais árido – e talvez contundente – que o português, que é bem mais suave, doce e melancólico. Mas nem por isso mais frio que o castelhano ou o francês ou o inglês ou o italiano... E já que falamos em idiomas: acho que o melhor idioma para prosa é o inglês. O mais conciso, o mais preciso. Para poesia, nessa ordem, o castelhano, o português, o italiano, o francês. Mas claro que não tenho nenhuma base teórica para o que estou dizendo. É pura intuição, é só o que sinto. No meu caso pessoal, os poucos contos que foram traduzidos para o inglês me pareceram mais próximos do que eu quis dizer, exatamente pela concisão, pela precisão. Já outros, traduzidos ao castelhano, se aproximam mais de como foram escritos, talvez por terem sido vividos, imaginados, em castelhano, embora nascidos em português, o único idioma em que escrevo meus contos... Enfim, qual o idioma mais quente? Aquele que expressa a verdade do autor. Que expõe sua alma. Escrever é isso: se revelar, buscar um encontro, um diálogo, uma comunhão. Esse é o único idioma quente, quando verdadeiro.


Já visitou algum país em que desconhecia completamente a língua nativa?


Ah, vários... Países exóticos, como Dinamarca, Suécia, Holanda, Alemanha, Argélia, Marrocos, o Saara Ocidental... se bem que, nesses três últimos, fala-se francês ou espanhol. Argélia, Marrocos, Saara Ocidental, Suécia e Dinamarca, por trabalho. Gostei muito, mas não moraria em nenhum deles. Holanda, para ver amigos, nos tempos em que havia exilados latino-americanos. Também gostei muito, e também não moraria lá. Morei, aos meus dez anos, na Alemanha. Voltei duas vezes. Não entendia patavina. A memória não guardou nada do idioma, e os alemães, principalmente das cidades menores, têm uma birra danada, insistem em fingir que não entendem inglês. Aí, fica complicado. Ah, sim: a primeira vez, voltei para ver o cenário de uma parte marcante da minha infância. Puro turismo, digamos. A segunda, para participar de um seminário importante, e justamente numa cidade onde morei menino, Göttingen. Foi muito emocionante voltar, apesar de não conseguir me fazer entender na hora de comprar pasta de dentes...

Bons tradutores precisam ser invisíveis?


Detesto filme dublado. Tradução em que o tradutor aparece é a mesma coisa: acho uma violência traduções com notas de pé de página, mesóclises, essas coisas todas feitas para demonstrar erudição e que violam o texto original. Boa tradução é aquela que você não percebe que é tradução. Todo meu esforço é sumir, é  fazer com que o leitor ache que está lendo um livro que foi escrito no português do Brasil. Estranho trabalho, esse: fazer de tudo para que ninguém perceba o que foi feito...


O que não é  passível de tradução?


Não sei. Poesia, talvez. A menos que traduzida por outro poeta. Mas tudo é traduzível, desde que não assassine a obra original. Pense bem: se não fossem as traduções, o mundo não conheceria maravilhas. Então, tudo é  traduzível, desde que o trabalho seja bem feito, com seriedade.

SOBRE A NEVE DE PARIS.


Todo fim de ano Rosa Freire D’Aguiar faz seu movimento migratório e cruza o Oceano Atlântico para fugir do verão carioca. Prefere a neve do inverno parisiense, onde ela tem casa, amigos, história. A tradutora que se transformou em uma referência nacional, tanto entre tradutores e acadêmicos que estudam a tradução, pode agora se dar ao luxo de trabalhar com obras mais refinadas e, volta e meia, sugerir alguns livros para a editora, neste caso, a Companhia das Letras.

No seu currículo tem traduções de autores do porte de Ernesto Sábato, Manuel Vázques Montalbán e Louis-Ferdinand Céline. Sim, ela traduz do espanhol e do francês para o português. Recentemente, traduziu um best-seller internacional, A elegância do ouriço, de Muriel Barbery (bem como A morte do gourmet, da mesma autora).


Casada por 25 anos com a maior referência na reflexão da economia brasileira, Celso Furtado, que faleceu em 2004, Rosa exerce também o papel de diretora cultural do Centro Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento e sua vivência e posição de observadora dos debates sociais, econômicos e culturais faz dela alguém que, por sua leitura e viagens, sabe que a tradução pode ajudar a dar sobrevida a línguas que, segundo a UNESCO, morrem anualmente por falta de documentos traduzidos. “O Paraguai tem um programa para traduzir vários documentos para o guarani e isso é importante porque forma pessoas interessadas em traduzir o guarani e, com isso, não deixa a língua morrer. Acho que seria importante traduzir obras importantes para as grandes línguas indígenas. Por que os índios no Brasil não podem ler Machado de Assis na língua deles? É claro que precisa se fixar a língua, mas por que não?”

Qual o primeiro livro que você leu ciente de que estava tendo uma experiência inédita de leitura?

Lembro-me perfeitamente, quando eu era criança li um livro chamado Cazuza, do Viriato Correia, acho que ninguém mais lembra dele, mas ele era um escritor muito conhecido. O Cazuza era um menininho que viajava pelo Brasil. Era uma forma de você conhecer o Brasil através das viagens do Cazuza. Eu fiquei tão maravilhada, não sei que idade eu tinha, 8 ou 7 anos, mas acho que fiquei maravilhada com o livro e com o Brasil.


Os livros podem fazer pessoas melhores?


Melhor, não sei. Eu já fiz o teu papel, eu era jornalista antes e entrevistei muito escritor aqui na França e pra todos eles eu fazia uma pergunta mais ou menos parecida. E nenhum deles acreditava no poder da literatura. Fiz essa pergunta pro Jorge Simenon, Ernesto Sábato, Julio Cortázar e todos eles disseram que não. Agora acho que com os livros as pessoas ficam mais conscientes. Lembro muito bem do Cortázar falando que nunca um livro derrubou um tirano, mas acho que ele ajuda. Digamos que o livro faz um trabalho de colocar a picareta embaixo do pedestal e vai enfraquecendo.


Quais são as grandes virtudes e particularidades da língua francesa e do português?


O que do francês eu acho bonito, e que ao mesmo tempo atrapalha o tradutor, é a pouca flexibilidade da língua, ela é muito rígida. Costuma-se dizer que ela é uma língua muito apolínea e o português seria uma língua mais dionisíaca. Acredito que o português, assim como o espanhol, tem mais nuances, mais cores. Em compensação, o francês, já em função um pouco de um comportamento cartesiano dos franceses, tem palavra pra tudo. Vou te contar uma bobagem, só pra exemplificar: eu cheguei muito jovem na França, já falando francês. Mas o meu francês era muito clássico, a língua do dia a dia eu não tinha. E aí fui ver um apartamento pra alugar, a moça da agência me deu a chave do apartamento, ele estava vazio, e ela me disse: veja se tem alguma coisa quebrada, quando você chegar, me diz. E a tampa da privada estava quebrada. Eu não sabia como se dizia tampa da privada, mas cheguei lá e me fiz entender.  Mas aí a moça disse: qual das duas tampas? Ou seja, uma língua que tem duas palavras, uma para a tampa em que você senta e outra para a que cobre a privada, é  uma língua alucinante. Esse é um rigor bonito, certamente, mas para traduzir é mais difícil porque ele não tem o jogo de cintura que a gente tem, nossa língua é mais barroca, dá mais voltas. De qualquer forma, é uma tradução boa de se fazer, o que não acontece quando se traduz livros do português para o francês. Já fiz isso algumas vezes e é uma catástrofe. Porque em boa parte das vezes a pessoa não sabe o que quer dizer em português. A clareza de mente do brasileiro ainda deixa muito a desejar, digo isso mais em relação aos textos atuais.


Já visitou algum país em que desconhecia completamente a língua nativa?


Já e foi assustador, é  horrível. Mas quando eu visitei esses países eu não era tradutora, era jornalista. Com inglês, de modo geral, mas de modo bem geral mesmo, a gente se vira. Mas quando fui à China, em 1980, com o Celso (Furtado). Ninguém falava nada, de língua nenhuma, era muito antes dessa abertura, todo mundo ainda vestido com aquelas túnicas Mao. Agora, em Xangai, que era um porto grande e havia tido alguma influência ocidental no século 19, havia alguns jovens que falavam algumas poucas palavrinhas em inglês. E se não fosse por eles e essas poucas palavras, nós não saberíamos muita coisa que era proibido se saber. Mas é aflitivo.

Como é a organização dos seus livros?


Muito organizados. Aqui na França o grande auê eram os livros do Celso (Furtado). Esses livros eu levei pro Brasil, tirei 2300 livros daqui, e quando olho pra minha casa aqui, que é pequena, fico besta em como cabia tanto livro. Deixeis aqui alguns ensaios e livros mais ligados à cultura, ciências humanas, literatura sul-americana. Mas é tudo organizado. Não tem nada a ver com a lógica das bibliotecárias, mas na minha lógica eu sei direitinho onde está tudo. Se você quiser, posso ligar pra minha empregada e dizer pra ela exatamente onde está um livro tal e ela pega pra mim.

Qual o livro de tradução mais difícil até hoje?


Foram os do (Louis-Ferdinand) Céline. Achei que era o primeiro, mas depois traduzi um outro dele e foi um trabalho do cão. O Céline é difícil em francês e muito difícil de restituir em português. Porque tem muita gíria, muita palavra e construção inventada. Tem gente que diz: ah, é impossível traduzir, mas não é não. Tudo é possível traduzir. Não acredito nessa história de que exista algo impossível de traduzir, às vezes você precisa fazer uma passagem. Mas não é e nem deve ser impossível de se traduzir qualquer texto.



SE O BOLO É BOM, QUAL O PROBLEMA?


São centenas de milhares de pessoas que viram a página onde se imprime o nome de Renato Motta. Tradutor de autores responsáveis por gordos números de venda, tais como as escritoras Nora Roberts e Marian Keyes, Motta tem um contato mais próximo com os leitores que, mais atentos, conseguem prestar atenção no seu nome mesmo que induzidos ao hipnotismo das fontes gigantes dos autores de best-sellers.


Segundo ele, “é muito difícil que um leitor tenha lido o livro em inglês e vá conversar com o tradutor sobre sua tradução. O que toca mais o leitor é a fluência do texto. Quando ele flui, o leitor acha que é uma tradução boa. Mas quando você traduz um livro, é preciso entender que você trabalha com escolhas. Lembro de estar numa convenção sobre tradução uma vez e uma pessoa caiu de pau na Lia Wyler (tradutora da saga Harry Potter). Isso porque o personagem de Hagrid, no texto original, ele fala tudo errado em inglês, porque é um cara humilde e tal. E na tradução em português ele fala sem erros. A Lia Wyler estava na convenção e se defendeu justificando que aquilo foi uma escolha dela, pois, em sua concepção, para um livro infanto-juvenil, ela achou que faria mal em escrever palavras erradas.” (Nota da edição: tentamos uma entrevista com a tradutora Lia Wyler, mas sua editora, a Rocco, informou que ela não mais conversa com a imprensa).


Professor de inglês em uma escola particular, Motta sabe também que, além de todos os benefícios de velocidade e conteúdo online que a internet disponibiliza, é  também cada vez mais fácil para jovens estudantes de línguas estrangeiras, particularmente do inglês, tomarem a iniciativa de traduzirem textos que, nas mãos de um profissional, levam um tempo maior para chegar às livrarias. No entanto, ele reafirma que de nenhuma maneira, até onde sua experiência com o mercado vai hoje, isso desestimula a compra dos livros que já foram disponibilizados, em traduções amadoras, pela internet.


Qual o primeiro livro que você leu ciente de que estava tendo uma experiência inédita de leitura?


O Fim da Infância, de Arthur C. Clarke, foi um livro importante para a minha formação de leitor, pois fala de uma sociedade utópica criada na Terra por extraterrestres e de como seria a evolução da raça humana num mundo perfeito. Curiosamente, não sou fã de ficção científica, mas esse livro me mostrou a riqueza do pensamento humano. Como tradutor, a obra que abriu minha mente para as infinitas possibilidades do mundo tradutório foi As brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, na impecável tradução de Waltensir Dutra. Esse livro me mostrou que as mulheres têm uma visão específica das coisas, e ela complementa o olhar masculino que foi imposto ao mundo através dos séculos. Os avanços da sociedade moderna têm muito a ver com a visão feminina, que vem sendo mais valorizada nas últimas décadas. Esse tema me interessa tanto que pretendo, um dia, escrever um livro sobre o assunto. Curiosamente, isso também se mostrou utilíssimo no meu trabalho como tradutor de duas das mais importantes autoras da atualidade.

Os livros podem fazer pessoas melhores?


Certamente. Os livros trazem para os leitores a possibilidade de conhecer outros lugares, outras ideias, outras culturas, outras vidas, outras realidades. Toda forma de arte torna as pessoas melhores, mas a literatura talvez seja a mais abrangente e completa das artes, pois cria um vínculo pessoal entre o autor e o leitor. 


Quais são as grandes virtudes e particularidades da língua portuguesa?


A suavidade das palavras torna as línguas latinas (e o português em especial)
, idiomas musicais. As línguas anglo-saxônicas, nórdicas e eslavas são mais guturais, o que as torna “ásperas” aos ouvidos. A estrutura da língua portuguesa, por sua vez, é muito complexa. A gramática é difícil, os verbos têm múltiplas flexões e os objetos inanimados têm gênero. Para um alemão é difícil entender por que “trem”, “balde” e “mar” são masculinos, “parede” e “viagem” são femininos e a palavra “grama” existe nos dois gêneros.

Que palavra(s) (ou particularidade gramatical) mais te intriga na língua inglesa?


O inglês me fascina, entre outras coisas, pela quantidade imensa de vocábulos. A língua inglesa tem pelo menos duas vezes mais palavras do que a língua portuguesa. As pessoas costumam dizer que há vocábulos (como “saudade”) que só existem em português. Na verdade, há um número muito maior de palavras que só existem em inglês e, para traduzi-las, é necessário formar uma frase inteira em nosso idioma. Outra coisa fascinante no inglês é que muitas palavras emulam o som do que elas representam. É o caso de colidir (“crash”), mergulhar espalhando água (“splash”), espirrar (“sneeze”). Não temos isso em nosso idioma. Quanto às particularidades, uma das palavras da língua inglesa que eu mais aprecio é “flabbergasted” (pasmo). Além de ser sonora, ela possui um componente de indignação que não encontramos nas suas traduções possíveis para o português.


Como é a organização dos seus livros?


Não organizo nada e já cheguei ao cúmulo de comprar livros em duplicidade por não lembrar que já  possuía determinado título. Os livros em minha casa são separados pela altura, para melhor distribuição nas estantes. Tento reuni-los por autor, mas sem ordem alfabética. Tenho tantos livros que os guardo em todos os cômodos da casa, até nos maleiros dos quartos e na parte de cima do armário da cozinha.


Já visitou algum país em que desconhecia completamente a língua nativa?


Sempre fico perdido nos países da Escandinávia. Felizmente, quase todo mundo fala inglês por lá. Uma vez, na Suíça, no zoológico de Zurique, fui avisar ao tratador que alguns macacos estavam se matando. Perguntei se ele falava inglês, mas o rapaz só falava alemão, francês e italiano. Conseguimos nos entender por gestos, mas foi um momento tenso. É um ótimo exercício de humildade visitar um país sem conhecer uma única palavra do idioma.

Bons tradutores precisam ser invisíveis?

Depende. Você não pode colocar no texto uma referência brasileira específica em um livro irlandês, porque o leitor se sentirá traído. Nesse ponto, o tradutor é semelhante ao juiz de futebol. Se ele aparecer demais, é sinal de que está fazendo um mau trabalho. Por outro lado, um diálogo montado à base de trocadilhos, por exemplo, torna explícita a presença do tradutor. Nesse caso, porém, a atuação deve ser mínima. O leitor saberá que houve uma adaptação, mas entenderá sua necessidade, não se sentirá traído e, se for esperto, reconhecerá a qualidade do trabalho.
O que não é passível de tradução?

Trocadilhos são impossíveis de traduzir ao pé da letra, mas podem (e devem) ser adaptados pelo tradutor. É um desafio fabuloso e um excelente exercício de criatividade e competência.

Você tem um imenso currículo de best-sellers traduzidos. Após a leitura de tantos, dá pra identificar elementos de interseção entre enredos campeões de venda?

Para ser um campeão de vendas, em qualquer lugar do mundo, um livro deve ter uma história envolvente e simples, mas com uma trama bem tecida. Os críticos reclamam que os best-sellers seguem uma receita de bolo, mas nenhum deles consegue produzir um grande sucesso literário, embora muitos sonhem com isso a vida inteira. Se o bolo é gostoso, qual é o problema? Um livro cativante e bem escrito é uma obra de arte, sim senhor! Aqui no Brasil nós temos um problema grave: os cadernos literários dos grandes jornais quase nunca fazem resenhas de livros que vendem muito. Eles os ignoram solenemente. A elite intelectual brasileira desdenha Dan Brown e Nora Roberts, mas os lê debaixo das cobertas, antes de dormir. Isso é uma aberração, uma hipocrisia. Um bom livro, como um bom filme ou uma boa peça de teatro, não precisa exibir acrobacias estilísticas para demonstrar valor. Há livros que foram feitos para entreter, e não há nada de errado nisso. Eu criei o termo “livro-pipoca” para me referir, de forma carinhosa, aos livros que são gostosos de ler deitado numa rede, numa praia durante as férias, no metrô, ou antes, de ir para a cama. “Nem só de caviar vive o homem”, como já dizia Simmel. Livros populares, desde que bem escritos e bem traduzidos, servem para aumentar a base de leitores, e todo mundo sai ganhando. Só falta combinar isso com os editores dos cadernos literários.
 

Um comentário:

  1. Parabéns, Renata, ótima escolha!

    É sempre muito interessante saber como os tradutores mais experientes encaram seu trabalho.

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