segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Soldados de Salamina


Na noite de 22 de janeiro de 1939, quatro dias antes de as tropas de Franco tomarem Barcelona, Machado e sua família partiram em comboio rumo à fronteira francesa. Nessa fuga alucinada era acompanhado por outros escritores, entre eles Corpus Barga e Carles Riba. (...) conseguiram chegar a Collioure. Por fim, na noite de 27, depois de caminhar 600 metros sob chuva, cruzaram a fronteira. (...) Menos de um mês mais tarde morria o poeta (...) No bolso do capote de Antonio, seu ir...mão José encontrou umas anotações, entre as quais havia um verso, quem sabe o primeiro de seu último poema: “Estos días azules y este sol de la infancia”. (…) Mas a história - pelo menos a história que hoje quero contar - tampouco acaba aqui. Mais ou menos na mesma época que Machado morria em Collioure, Rafael Sánchez Mazas era fuzilado junto ao santuário do Collell. Sánchez Mazas foi um bom escritor (...) refugiou-se na embaixada do Chile. Lá passou grande parte da guerra; no final, tratou de escapar escondido em um caminhão, mas o detiveram em Barcelona e, quando as tropas de Franco chegaram à cidade, foi levado em direção à fronteira. Não muito distante desta ocorreu o fuzilamento, as balas apenas roçaram o seu corpo, ele se aproveitou da confusão e correu a esconder-se no bosque. De lá ouvia as vozes dos milicianos tratando de acossá-lo. Um deles o descobriu, por fim, e o fitou nos olhos. Em seguida gritou a seus companheiros: “Por aqui não tem ninguém!” Deu meia volta e se foi.
“De todas as histórias da História”, escreveu Jaime Gil, “sem dúvida a mais triste é a da Espanha, porque termina mal.” Termina mal? Nunca saberemos que foi o miliciano que salvou a vida de Sánchez Mazas, nem o que passou por sua mente quando o olhou nos olhos (...) 


 (“Soldados de Salamina”. Javier Cercas)




Diálogos com o leitor na produção literária...

Uma noite prodigiosa, uma dessas noites que talvez só vejamos quando somos novos, querido leitor. O céu estava tão fundo e tão claro que ao olhá-lo uma pessoa era forçosamente levada a perguntar-se se seria possível que debaixo de um céu daqueles pudessem viver criaturas más e tenebrosas. Questão esta que, para dizer a verdade, só é costume levantar-se quando somos jovens, muito jovens mesmo, querido leitor. Prouvera a Deus que pudésseis reviver com frequência essa idade na vossa alma! Enquanto ia pensando assim em várias pessoas, é claro que acabava por recordar-me involuntariamente do panegírico que a mim próprio eu havia tecido, nesses tempos. Já desde manhã se tinha apoderado de mim uma estranha disposição de espírito. Vinha-me a impressão de que vivia tão sozinho, de que havia ainda de chegar a ver-me abandonado por toda a gente, de que todos haviam se afastado de mim. Naturalmente todos têm agora o direito de perguntar-me: “Bem, vejamos: quem vêm a ser esses ‘todos’”?


(“Noites brancas”. Fiódor Dostoiévski)



quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Olha as estrelas e tem coragem...


Ela lhe apertou a mão com mais força. E Eugênio viu-lhe no rosto uma tão grande expressão de amor, que teve uma sensação de desfalecimento. Nunca ninguém olhara para ele daquele modo. O amor de Isabel era diferente... o de Eunice, não existia. Enfim ali estava uma criatura que se interessava por ele (...) Que tudo dava e nada pedia.
Beijou as mãos de Olivia. Depois olhou-as bem de perto, examinando-as com muito cuidado, como se quisesse verificar se elas eram reais. Olivia acariciava-lhe agora os cabelos muito de leve. Eugênio se sentia feliz, uma felicidade tonta, inesperada, um pouco sufocante. (...) Não! Ele ainda não estava salvo. Ergueu-se de súbito, sentindo arder-lhe o rosto, e caminhou até a janela. Olivia seguiu-o e disse-lhe baixinho:
- Olha as estrelas e tem coragem.
Eugênio segurou as mãos [de Olivia], e sem tirar os olhos do céu, murmurou:
- Se tu soubesses o bem que me fazes. Eu tinha a impressão de que todo o estímulo havia desaparecido de minha vida. Eu me sentia como uma “coisa” ... (...)
Como única resposta ela o abraçou com ternura.


 (“Olhai os lírios do campo”. Erico Verissimo)






Enfoque objetivo na descrição literária


“Que sabia ele a respeito disso?
Morava na rua Gabrielle, num prédio à beira dos jardins do Sacré-Couer. Subimos pela escada de serviço. Levou muito tempo para abrir a porta: três fechaduras nas quais rodou chaves diferentes com a lentidão e o cuidado que se empregam para seguir a combinação sutil de um cofre-forte.
Um minúsculo apartamento. Compunha-se apenas de uma sala e um quarto, que originalmente deveriam ser um só cômodo. Cortin...as de cetim rosa, presas por cordéis em fio de prata, separavam a sala do quarto. Esta era forrada de seda azul-celeste, e a única janela escondida por cortinas da mesma cor. Mesinhas de laca negra, sobre as quais se dispunham objetos de marfim ou de jade, pequenas poltronas estofadas em verde-pálido e um canapé coberto por um tecido estampado com ramagens de um verde ainda mais diluído davam ao conjunto o aspecto de uma caixa de bombons. A luz vinha dos apliques dourados da parede.
- Sente-se - disse-me.”


(“Uma rua de Roma”. Patrick Modiano. Prêmio Nobel de Literatura 2014)




acabávamos acostumando-nos a tudo...


(...) Mais isto durou alguns meses. Depois só tinha pensamentos de prisioneiro. Aguardava o passeio diário no pátio ou a visita do advogado. O resto do meu tempo, eu coordenava muito bem. Nessa época, pensei muitas vezes que se me obrigassem a viver dentro de um tronco seco de árvore, sem outra ocupação além de olha a flor do céu acima da minha cabeça, eu teria me habituado aos poucos. Teria esperado a passagem dos pássaros ou os encontros entre as nuvens tal como esperava aq...ui as estranhas gravatas do advogado, e, como num outro mundo, esperava até sábado para estreitar nos meus braços o corpo de Marie. Ora, a verdade, afinal, é que eu não estava numa árvore seca. Havia pessoas mais infelizes do que eu. Era, aliás, uma ideia de mamãe, e ela repetia com frequência que acabávamos acostumando-nos a tudo. (...)

 (“O estrangeiro”. Albert Camus)


terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena...


Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,...

Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu. 


 ("Mar português" - Mensagem. Fernando Pessoa)




Enfoque objetivo na descrição literária

“Que sabia ele a respeito disso?
Morava na rua Gabrielle, num prédio à beira dos jardins do Sacré-Couer. Subimos pela escada de serviço. Levou muito tempo para abrir a porta: três fechaduras nas quais rodou chaves diferentes com a lentidão e o cuidado que se empregam para seguir a combinação sutil de um cofre-forte.
Um minúsculo apartamento. Compunha-se apenas de uma sala e um quarto, que originalmente deveriam ser um só cômodo. Cortin...
as de cetim rosa, presas por cordéis em fio de prata, separavam a sala do quarto. Esta era forrada de seda azul-celeste, e a única janela escondida por cortinas da mesma cor. Mesinhas de laca negra, sobre as quais se dispunham objetos de marfim ou de jade, pequenas poltronas estofadas em verde-pálido e um canapé coberto por um tecido estampado com ramagens de um verde ainda mais diluído davam ao conjunto o aspecto de uma caixa de bombons. A luz vinha dos apliques dourados da parede.
- Sente-se - disse-me.”



(“Uma rua de Roma”. Patrick Modiano. Prêmio Nobel de Literatura 2014)




sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Preciso muito falar com você...


Ele voltou-se. Umedeceu com a ponta da língua os lábios secos. E teve um meio sorriso que lhe deu à fisionomia uma expressão desamparada.
- Eu estava tão distraído - desculpou-se abotoando o paletó.
Você não estava distraído, pensei responder-lhe, você estava na defensiva. Preparava-se para uma luta. Era com o Diabo? quis gracejar. Contive-me. Não cabia agora nenhum gracejo.
- Acho que podemos enfim conversar. Ou não?
Ele escudou-se atrás da mesa. Baixou o olhar para os meus pés.
- Você está parecendo uma menina assim descalça...
- Gosto de andar descalça no verão - murmurei aproximando-me. - André, preciso muito falar com você.
Apesar da semiobscuridade da sala, notei que sua expressão estava agora mais firme. Ele se recompunha.
- Sim, precisamos conversar - concordou num tom de homem de negócios que vai ver se dispõe de algum tempo livre em sua agenda. - Mas vamos acender a luz?
Antes que ele chegasse ao abajur, segurei-lhe a mão por detrás. Por um rapidíssimo segundo ficamos de mãos dadas no escuro, imóveis e tão próximos que cheguei a sentir sua respiração. Mais um passo e poderia beijá-lo na boca. Contudo, mais profundo ainda do que o beijo era aquele halo espesso que nos envolvia e nos mantinha em suspenso.
- Anoiteceu - disse André desvencilhando-se. Acendeu a luz. - Não está melhor assim?
- Não, estava melhor antes - respondi acendendo um cigarro (...)

(“Verão no aquário”. Lygia Fagundes Telles)



quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

A rua

Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nos nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo sentimento insuportável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia - o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia. Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua.

 (“A alma encantadora das ruas”. João do Rio)




Os santos aparecem, os demônios assombram

A ver a imensidão dos fiordes, as montanhas de pedra cortadas por rigor, o movimento nenhum, achei que o mundo mostrava a beleza mas só sabia produzir o horror. (...) Podia ser que eu estivesse ainda mais magra por ter ficado vazia dos poucos gramas que pesava a alma. A minha mãe chamava-me estúpida. Perguntei-lhe que sentido encontrava na vida. O que andaríamos ali a tentar descobrir. Mas ela nunca o saberia. Surpreendeu-se com a profundidade da questão. Foi um modo intuitivo que tive de a magoar, para que não me ofendesse com sua contínua e impensada rejeição. Magoávamo-nos, acreditava eu, sempre por causa da ternura. Como que a reclamá-la enquanto a perdíamos de vez. (...) Repeti: a morte é um exagero. Leva demasiado. Deixa muito pouco. (...) As nossas pessoas olhavam-me sem saber se viraria santa ou demônio. Os santos aparecem, os demônios assombram.

 (“A desumanização”. Valter Hugo Mãe)






Se é verdade que apenas podemos viver uma pequena parte daquilo que há dentro de nós, o que acontece com o resto?

De mil experiências que fazemos, no máximo conseguimos traduzir uma em palavras, e mesmo assim de forma fortuita e sem o merecido cuidado. Entre todas as experiências mudas, permanecem ocultas aquelas que, imperceptivelmente, dão às nossas vidas a sua forma, o seu colorido e a sua melodia. Quanto depois, tal qual arqueólogos da alma, nós nos voltamos para esses tesouros, descobrimos quão desconcertantes eles são. O objeto da observação se recusa a ficar imóvel, as palavras deslizam para fora da vivência e o que resta no papel no final não passa de um monte de contradições. Durante muito tempo acreditei que isso era um defeito, algo que deve ser vencido. Hoje penso que é diferente, e que o reconhecimento de tamanho desconcerto é a via régia para compreender essas experiências ao mesmo tempo conhecidas e enigmáticas. Tudo isso parece estranho, eu sei, até mesmo extravagante. Mas desde que passei a ver as coisas assim, tenho a sensação de, pela primeira vez, estar atento e lúcido.


(“Trem noturno para Lisboa”, Pascal Mercier)



Os sonhos esquecidos

Helena sonhou que deixava os sonhos esquecidos numa ilha.
Claribel Alegria recolhia os sonhos, os amarrava com uma fita e os guardava bem guardados. Mas as crianças da casa descobriram o esconderijo e queriam vestir os sonhos de Helena, e Claribel, zangada, dizia a eles:
- Nisso ninguém mexe.
Então Claribel telefonava para Helena e perguntava:

- O que faço com os seus sonhos?

("O livro dos abraços". Eduardo Galeano. Tradução de Eric Nepomuceno)