segunda-feira, 15 de julho de 2013

Línguas como Patrimônio Imaterial
 
Gilvan Müller de Oliveira
fonte: Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística
06.01.2009
 
Línguas são artefatos históricos, construídos coletivamente ao longo de centenas ou milhares de anos. É através das línguas que as sociedades humanas, definidas como ?comunidades linguísticas? produzem a maior parte do conhecimento de que dispõem e é através da língua que são construídos os sistemas simbólicos de segunda ordem, como a escrita ou as matemáticas, e que permitem a ação humana sobre a natureza e sobre os outros homens.
Línguas são, nesse sentido, um tipo muito especial de SABER: são ao mesmo tempo o hardware e o software para a produção dos outros conhecimentos. Cada língua sintetiza, nas categorias que desenvolveu historicamente e nos seus modos de operação discursiva, experiências únicas e insubstituíveis.
Não são, como objetos - e muito menos como objetos culturais - de muito fácil percepção para a maioria das pessoas: as pessoas usam as línguas, não as percebem, como não percebem o ar que respiram e sem o qual não sobreviveriam mais de três minutos. Exceto em pontos muito específicos - aqueles em que as línguas interpelam diferenças convencionais, isto é, reprodutíveis pelo discurso: de classe, de gênero, de etnia, de religião - as línguas são o ponto cego da nossa vida social.
E no entanto, são uma das maiores expressões de diversidade que temos na humanidade: são aproximadamente 6.800 línguas no mundo, distribuídas de forma assimétrica entre os países. Embora 94% dos países do mundo sejam plurilíngues, isto é, tenham em seus territórios diferentes comunidades linguísticas, oito países concentram mais da metade das línguas do globo: Papua Nova-Guiné, Indonésia, Nigéria, Índia, México, Camarões, Austrália e Brasil.
No Brasil são faladas cerca de 210 línguas por cerca de um milhão de cidadãos brasileiros que não têm o português como língua materna, e que nem por isso são menos brasileiros. Cerca de 190 línguas são autóctones, isto é, línguas indígenas de vários troncos linguísticos, como o Apurinã, o Xokléng, o Iatê, e cerca de 20 são línguas alóctones, isto é, de imigração, que compartilham nosso devir nacional ao lado das línguas indígenas e da língua oficial há 200 anos, como é o caso do alemão, do italiano, do japonês.
O fato de termos aprendido que a situação ?normal? no mundo é a situação de monolinguíssimo e de termos aprendido a ver o plurilinguíssimo como uma anomalia, é mais um produto da história da criação do Estado-Nação nos últimos 300 anos, quando se estabeleceu o desiderato de ?um Estado, um Povo, uma Língua?, tão prejudicial à construção da cidadania. O Estado-Nação moderno e monoglota foi o responsável pelos maiores glotocídios, isto é, assassinatos de línguas de toda a história da humanidade até o presente momento. Só para dar um exemplo: calcula-se que se falavam no que é hoje o território brasileiro, em 1500, cerca de 1.080 línguas, das quais restaram hoje 15%: as 190 línguas já referidas. 85% das línguas desapareceram sem deixar vestígios, já que se tratava de línguas ágrafas, isto é, sem escrita, como aliás a maioria das línguas do mundo.
Darcy Ribeiro calcula que na primeira metade do século XX desapareceram no Brasil 67 línguas. E no entanto, línguas desaparecem muito menos de morte morrida, e muito mais de morte matada. São vítimas muito menos das mudanças históricas nas condições de veicularidade, de ampliação dos mercados, por exemplo, do que de políticas culturais - nesse caso chamadas de políticas linguísticas - de proibição, de desautorização, de minorização, de exclusão da escola; são vítimas da ideia de que a cidadania tem que ser monolíngue, da concepção que falar mais que uma língua é algo que deve ser evitado.
O Brasil tem uma triste tradição de políticas de destruição do patrimônio linguístico nacional - porque é disso que se trata: de compreendermos como e porquê línguas são um patrimônio para nosso país. Nenhum país da América Latina manteve tanta coerência entre o Diretório dos Índios do Marquês de Pombal - de 1753 - de um lado, e as 143 páginas de legislação anti-linguas produzido entre 1911 e 1945, recentemente compiladas pelo IPOL - Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística, e que atingiu seu ponto alto na chamada ?Campanha de Nacionalização do Ensino? do Estado Novo varguista. Pombal atacou as línguas indígenas e muito especialmente a Língua Geral, conhecido leigamente como Tupi; Vargas se concentrou nas línguas de imigração, com respingos importantes contra as línguas indígenas. Em vários outros momentos da nossa história, porém, podemos identificar os dispositivos de construção do monolinguíssimo e a violência desencadeada contra cidadãos brasileiros por causa das línguas que falavam. A política de estado no Brasil sempre foi a política da língua única.
E no entanto, continuamos hoje com políticas linguísticas refratárias à ideia de pluralidade e diversidade. É verdade que a Constituição de 1988 incorporou pela primeira vez na história o reconhecimento dos povos indígenas como etnias que têm o direito coletivo à sua cultura e à sua língua, provocando assim uma ruptura com a coerente política de ?integração? que vinha desde a Colônia. É verdade que temos hoje 115.000 alunos indígenas estudando em quase 3.500 escolas bilíngues, sob a coordenação de estados e municípios.
Mas é verdade também que os direitos linguísticos indígenas não foram estendidos aos falantes de outras línguas brasileiras, muito especificamente as línguas alóctones.
 
Línguas Brasileiras, um conceito com o qual só temos a ganhar: "Línguas brasileiras são línguas faladas no território nacional por comunidades linguísticas de cidadãos brasileiros".
 
Indígenas, quilombolas ou nipo-brasileiros, são todos brasileiros, logo, suas línguas são línguas brasileiras.
É verdade, além disso, que as escolas indígena bilíngues são bilíngues, na sua maioria absoluta, só no papel, porque o bilinguismo é estranho à tradição educacional brasileira, voltada historicamente para a imposição da língua única. Embora "bilíngues", as escolas indígenas têm sido muito mais um fator para a perda linguística do que para a manutenção e o desenvolvimento de uso das línguas.
Nesse sentido, é urgente - muito mais do que urgente - que o Estado Brasileiro passe a ver essa importante faceta da diversidade constitutiva do Brasil. A diversidade não é só racial, étnica, de gênero, regional, a diversidade também é linguística.
A década de 1990 viu a formulação da perspectiva fundamental de reconhecer e levar a efeito os DIREITOS LINGÜÍSTICOS das comunidades de brasileiros que falam outras línguas - minoritárias e minorizadas - em conformidade com o que reza a DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS LINGÜÍSTICOS apresentada pela UNESCO na Conferência de Barcelona em 1996 e traduzida e publicada no Brasil apenas em 2003.
O IPOL - Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística, entidade da qual sou coordenador, e que há muitos anos interage com os falantes das línguas minorizadas do Brasil no sentido de aportar-lhes apoio técnico para seus projetos linguísticos, vem trazer à discussão uma proposição de política federal de reconhecimento das comunidades linguísticas e das línguas como patrimônio, buscando o IPHAN e o Ministério da Cultura como interlocutores. Sou muito grato, aproveito a ocasião para agradecer, aos organizadores desta Conferência, pela oportunidade de podermos apresentar a ideia neste painel, onde a proposição pode ter uma audiência qualificada e especializada.
A criação de um LIVRO DE REGISTRO DAS LÍNGUAS, ao lado dos outros livros de registro já existentes no âmbito do programa de patrimônio imaterial brasileiro, como o livro de registro dos saberes, o livro das celebrações, ou o livro dos lugares, levaria ao reconhecimento, pela primeira vez na história do país, de que as línguas são parte do patrimônio cultural brasileiro. De que queremos que as línguas das nossas comunidades linguísticas estejam aqui no futuro.
A dinâmica de registro a ser pensada e executada tocará, sem dúvida, em várias questões que não têm sido tematizadas com frequência no país. Uma delas, e não a mais importante, é que enquanto o Brasil, sistematicamente, desconhece sua riqueza linguística e não pensa uma política para uma gestão do conhecimento produzido nestas línguas, entidades norte-americanas e europeias, por exemplo, às vezes em parceria com entidades brasileiras, às vezes não, têm registrado nossas línguas e composto acervos no exterior, onde esta informação é processada de vários pontos de vista. É o caso de um dos maiores bancos de dados de línguas do mundo, o Ethnologue, da entidade norte-americana Summer Institute of Linguistics, que usou e tem usado a atividade missionária no Brasil e em dezenas de países não só para "salvar as almas" dos indígenas, mas também para coletar informação linguística. É o caso também do Projeto de Documentação de Cinco Línguas Tupi Urgentemente Ameaçadas, financiado pelo Endangered Languages Documentation Programme da Inglaterra, ou dos projetos com as línguas Kuikuro, Aweti, Trumai, Tiriyó, Mawé e Bakairi financiados pelo Programa DOBES, da Fundação Volkswagen, da Alemanha, entre outros.
É claro que não estou querendo sugerir que estes projetos, especialmente os que têm parceiros brasileiros, devam ser vistos com suspeita, ou, como tem sido às vezes feito, que por associação à ?biopirataria? componhamos a palavra ?glotopirataria?, isto é, a pirataria das riquezas linguísticas dos países pobres pelos países imperialistas. Mas merece nossa atenção o fato de a riqueza linguística do país despertar mais atenção no exterior do que aqui, e o fato de que essa questão não passe pela atenção qualificada do Estado.
Inexiste até o momento um programa que dê unidade aos trabalhos descritivos realizados e que ultrapasse a questão apenas da documentação técnica da língua para fins acadêmicos, incorporando a questão dos DIREITOS LINGÜÍSTICOS dos falantes e, ao lado disso, o que é mais importante: o reconhecimento do Político que há nessa questão - a inclusão, e mais do que isso, a redefinição da associação proposta pelo Estado Brasileiro entre língua e cidadania, língua e identidade.
O Livro de Registro das Línguas reúne as condições, como instrumento de Estado e como instrumento de cidadania, para ser pivô na elaboração de uma política nacional de línguas minoritárias e minorizadas, incluindo-se aí toda a riqueza das formas orais populares do português. Habilita-se a esse papel pela credibilidade do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e pelas políticas de inclusão do Governo Federal. Habilita-se ainda pela possibilidade de ser, desde onde funcionará, o articulador dos movimentos sociais dos falantes de línguas minoritárias e dos grupos intelectuais preocupados com a perda linguística no país.
Diz o sociolingüista Louis-Jean Calvet que não são os homens que existem para servir às línguas, são as línguas que existem para servir aos homens. Para que isso ocorra, entretanto, precisamos reconhecer as línguas e através delas o que é mais importante: AS COMUNIDADES LINGÜÍSTICAS BRASILEIRAS. Precisamos formular uma política cultural - isto é, uma política linguística - que reconheça todas as línguas de todos os brasileiros. A criação, no setor do patrimônio imaterial do IPHAN do Livro de Registro das Línguas é uma oportunidade histórica que temos para superar o colonialismo da língua única e, coerentemente com a política de inclusão social e de construção da cidadania do Governo Federal afirmar que é possível ser brasileiro em muitas línguas.
 

Cor de burro quando foge?

Que cor será que tem o burro quando foge?!!! As cores fazem parte do nosso dia a dia e estão impregnadas de significados. Mas, com certeza, nem todos os estudos teóricos das cores, é passível que chegar a uma conclusão sobre qual é a cor do burro quando ele foge! 

A expressão coloquial “cor de burro quando foge” teria nascido da antiga expressão “corro de burro quando foge”, pois quando foge o animal fica sem controle, agressivo, furioso, causando medo. Portanto, as pessoas devem correr do burro quando ele foge. O gramático, latinista e médico por profissão, Antônio de Castro Lopes teria sido o primeiro a registrar tal expressão que, a princípio, nada teria a ver com a cor do animal. Mas a mudança da expressão para “cor de burro quando foge”, tem como sentido referir-se a cor indefinida, empardecida, como a cor do animal! A expressão foi empregada por Joaquim Manoel de Macedo no clássico “A moreninha” em 1844: "(...) meu amigo Fabrício, que talvez acaba de chegar de alguma visita diplomática, vestido com esmero e alinho, porém tendo a cabeça encapuçada com a vermelha e velha carapuça do Leopoldo; este, ali escondido dentro de seu robe de chambre cor de burro quando foge, e sentado em uma cadeira tão desconjuntada que, para não cair com ela, põe em ação todas as leis de equilíbrio, que estudou em Pouillet". 

Talvez, a inversão ou mudança da expressão, assim como tantas outras, tenha acontecido pela admirável capacidade humana de ouvir mal e reinterpretar as palavras transformando-as em expressões absurdas e até engraçadas! Muitas das expressões populares são produtos da modificação criada por seus ouvintes.
 
Então: corra de burro quando foge e também das cores de burro quando foge, porque é uma das poucas que não favorece absolutamente ninguém!
 
 

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Grandes nomes da literatura hispano-americana: Clemente Palma


Clemente Palma Ramírez, nasceu em Lima, Peru, em 03 de dezembro de 1872 e faleceu na mesma cidade em 1946. Filho do escritor peruano Ricardo Palma, foi um extraordinário contista, cuja fama superou a iniquidade dos anos. Seu mais celebre livro, “Contos Malévolos”, publicado em 1904, mostra a grande originalidade do autor e o domínio da narração curta. Clemente Palma enriqueceu a tradição moderna do conto, instaurando o insólito na narrativa de aparência realista ou naturalista. É justamente esta aptidão que outorga distinção e sarcasmo a sua prosa verdadeiramente original. “Contos Malévolos” foram reeditados em Paris, em 1912. Palma, porém, foi literalmente arrebatado pelo jornalismo, dedicando-se a escrever editoriais políticos e criticas, abandonando lentamente sua melhor faceta, a de contista. No entanto, em 1925, publicou “Historietas Malignas” e as novelas “Mors ex vita” (1923) e “XYZ” (1935), uma pequena novela, que para alguns pareceu extravagante demais pelo uso do ocultismo, na qual se alternam seres comuns com fantasmas endiabrados, como nos relatos do escritor francês Joris-Karl Huysmans, seu autor favorito. Suas crônicas, publicadas semanalmente com o pseudônimo de “Corais”, eram muito esperadas, pois nelas juntavam-se, com rara habilidade o pitoresco local com o fantástico, como se sua imaginação prodigiosa tivesse saído de um conto fantástico, para repousar na prosa jornalística. Palma adentrava como um estilete afiado na vaidade da sociedade “limenha” e alfinetava as pessoas ambiciosas e os costumes da época. Poético na juventude, diabólico depois e erudito mais tarde, Clemente Palma é considerado uma figura chave no desenvolvimento do conto no Peru, ao introduzir temas novos na literatura e romper com a tradição literária peruana, da qual seu pai tinha sido um expoente. Suas histórias tratam principalmente de temas fantásticos, psicológicos, de terror e de ficção. Sentia atração pelo mórbido e muitos de suas personagens são anormais e perversos.
 



Os olhos de Lina 

Clemente Palma

Tradução: Renata C.B. Moreno.
Conto extraído da antologia “Cuentos malévolos”, publicada em 1904.



 

O tenente Jym da armada inglesa era nosso amigo. Quando entrou para a “Companhia Inglesa de Vapores” o víamos a cada mês e passávamos uma ou duas noites com ele em alegres bebedeiras. Jym tinha passado grande parte de sua juventude na Noruega, e era um insigne bebedor de uísque e de absinto; sob a ação destes licores incumbia-se de  cantar com voz forte, lindas baladas escandinavas, que depois nos traduzia. Uma tarde fomos nos despedir dele em seu camarote, pois no dia seguinte zarpava o vapor para San Francisco. Jym, em sua cama, não podia cantar a plenos pulmões, como era seu costume, por razões de disciplina naval, e resolvemos passar a vigília contando histórias e aventuras de nossas vidas, temperando as relações com seus respectivos goles de licor. Seriam duas da manhã, quando terminamos, os visitantes de Jym, nossos relatos; só Jym faltava e lhe exigimos que fizesse o seu.  Jym recostou-se num sofá; pôs numa mesinha próxima uma pequena garrafa de absinto e um aparelho para destilar água; acendeu um charuto e começou a falar do seguinte modo:
Não vou contar para vocês uma balada nem uma lenda do norte, como em outras ocasiões; hoje se trata de uma história verídica, de um episódio de minha vida de noivo. Já sabem que até dois anos atrás, eu vivia na Noruega; por minha mãe sou norueguês, mas meu pai fez-me súdito inglês. Na Noruega casei-me. Minha esposa chama-se Axelina ou Lina, como eu a chamo, e quando tiverem a vontade de dar um passeio por Christiania[i], vão a minha casa, que minha esposa os fará as honras com muito gosto.

Começarei dizendo a vocês que Lina tinha os olhos mais estranhamente endiabrados do mundo. Ela tinha dezesseis anos e eu estava louco de amor por ela, mas professava a seus olhos o ódio mais raivoso que pode caber no coração de um homem. Quando Lina fixava seus olhos nos meus desesperava-me, me sentia inquieto e com os nervos crispados; parecia que alguém esvaziara uma caixa de alfinetes no meu cérebro, que se espalhavam ao longo de minha espinha dorsal; um frio doloroso galopava por minhas artérias, e a epiderme arrepiava-se, como sucede geralmente nas pessoas ao saírem de um banho gelado, e a muitas ao tocar uma fruta peluda, ou ao ver o fio de uma navalha, ou ao roçar com as unhas no veludo, ou ao escutar o frufru da seda ou ao olhar uma grande profundidade. Essa mesma sensação experimentava ao olhar os olhos de Lina. Consultei vários médicos de minha confiança sobre este fenômeno e nenhum me deu a explicação; limitavam-se a sorrir e a dizer que não me preocupasse com o assunto, que eu era um histérico, e não sei que outras tolices. E o pior é que eu adorava Lina com exasperação, com loucura, apesar do efeito desastroso que me faziam seus olhos. E não se limitavam estes efeitos à tensão álgida de meu sistema nervoso; tinha algo mais maravilhoso ainda, é que quando Lina tinha alguma preocupação ou passava por certos estados psíquicos e fisiológicos, eu via passar por suas pupilas, ao olhar-me, na forma vaga de pequenas sombras fugitivas coroadas por pontinhos de luz, as ideias; sim, senhores, as ideias. Essas entidades imateriais e invisíveis que temos todos ou quase todos, pois há muitos que não têm ideias na cabeça, passavam pelas pupilas de Lina com formas inexpressáveis. Disse sombras porque é a palavra que mais se acerca. Saíam por trás da esclerótica, atravessavam a pupila e ao chegar à retina lampejavam, e então eu sentia que no fundo de meu cérebro respondia uma dolorosa vibração das células, surgindo, por sua vez, uma ideia dentro de mim.
Ocorria-me comparar os olhos de Lina ao vidro da claraboia de meu camarote, pelo qual via passar, ao anoitecer, aos peixes assustados com a luz do meu lustre, chocando suas mirabolantes cabeças contra o maciço vidro, que, por sua espessura e convexidade, faziam borradas e deformes suas silhuetas. Cada vez que via essa festa de ideias nos olhos de Lina, dizia eu: “Ora! Já estão passando os peixes!” Só que estes atravessavam de um modo misterioso a pupila de minha amada e se entocavam nas cavernas escuras de meu encéfalo.

Mas, bah! Sou um desordenado. Falo do fenômeno sem ter descrito para vocês os olhos e as belezas de minha Lina. Lina é morena e pálida: seus cabelos ondulados formavam cachos na nuca com tão adorável encanto, que jamais beleza de mulher alguma me seduziu tanto como o dorso do pescoço de Lina, ao se submergir na sedosa negrura de seus cabelos. Os lábios de Lina, quase sempre entreabertos, por certa tensão infantil do lábio superior, eram tão vermelhos que pareciam acostumados a comer morangos, a beber sangue ou depositar lá os dois intensos rubores; provavelmente este último, pois quando as bochechas de Lina se acendiam, empalidecia aqueles.
Sob esses lábios tinha uns dentes diminutos tão brancos, que iluminavam a face de Lina, quando um raio de luz brincava sobre eles. Era para mim uma delícia ver Lina morder cerejas; com boa vontade teria me deixado morder essa deliciosa boquinha, a não ser por esses olhos endemoninhados que habitavam mais acima. Esses olhos! Lina, repito, é morena, de cabelos, sobrancelhas e cílios negros. Se a tivessem visto dormindo, alguma vez, eu perguntaria para vocês: De que cor acha que são os olhos de Lina? Sem dúvida que, guiados pela cor de sua cabeleira, de suas sobrancelhas e cílios, me diriam: negros. Que decepção! Pois, não, senhores; os olhos de Lina tinham cor, é claro, mas nem todos os oculistas do mundo, nem todos os pintores teriam acertado ao determinar nem ao reproduzir. Os olhos de Lina eram de um traço perfeito, puxados e grandes; embaixo deles uma linha azulada formava as olheiras e pareciam como a tênue sombra de suas longas sobrancelhas. Até aqui, como veem, nada há de raro; estes eram os olhos de Lina fechados ou entornados; mas uma vez abertos e luzentes as pupilas, ali estavam minhas angústias. Ninguém me tirará da cabeça que, Mefistófeles[ii] tinha seu gabinete de trabalho por trás dessas pupilas. Eram elas de uma cor que flutuava entre todas da gama, e suas mais complicadas combinações. Às vezes pareciam-me duas grandes esmeraldas, alumbradas por detrás de luminosos rubis. As fulgurações verdosas e avermelhadas que desprendiam se irisavam pouco a pouco e passavam por mil mutações, como as bolhas de sabão, depois vinha uma cor indefinível, mas uniforme, encobrindo todas, e no meio palpitava um pontinho de luz, do mais mortificante pelos tons felinos e diabólicos que tomava. Os fervores do sangue de Lina, suas tensões nervosas, suas irritações, seus prazeres, as afetações e jogos de seu espírito, denunciavam-se pela cor que adquiria esse ponto de luz misterioso. Com a continuidade da convivência com Lina cheguei a traduzir algo dos brilhos múltiplos de seus olhos. Seus sentimentalismos de moça romântica eram verdes, suas alegrias, violeta, seus ciúmes, amarelos, e vermelhos seus ardores de mulher apaixonada. O efeito destes olhos em mim era desastroso. Tinham sobre mim um império horrível, e, na verdade, eu sentia minha dignidade de homem humilhada com essa espécie de escravatura misteriosa, exercida sobre minha alma por esses olhos que odiava como a pessoas. Em vão era que tentasse resistir; os olhos de Lina me subjugavam, e sentia que me arrancavam a alma para triturá-la e a carboniza-la entre duas faíscas de esse olhar de Luzbel[iii]. Por último, com a alma ardente de amor e de ira, tinha eu que baixar o olhar, porque sentia que meu sistema nervoso chegava a torções pungentes, e que meu cérebro saltava dentro de minha cabeça, como uma mamangaba[iv] presa dentro de um forno. Lina não se dava conta do efeito desastroso que me faziam seus olhos.
 

Todos em Christhianía elogiavam seus olhos por formosos que eram e em ninguém causava a impressão terrível que a mim: só eu estava constituído para ser a vítima deles. Eu tinha reações de orgulho; às vezes pensava que Lina abusava do poder que tinha sobre mim, e que se comprazia em me humilhar; então minha dignidade de homem insurgia-se vingativa reclamando imaginárias presunções, e a minha vez me divertia em tiranizar minha noiva, exigindo-lhe sacrifícios e mortificando-a até fazê-la chorar. E no fundo havia uma intenção que eu tentava realizar dissimuladamente; sim, nessa valente sublevação contra a tirania dessas pupilas estava disfarçada minha covardia: fazendo-a chorar Lina fechava os olhos, e fechados os olhos me sentia livre de minha corrente. Mas, a pobrezinha ignorava a arma terrível que tinha contra mim; singela e cândida, a boa moça tinha um coração de ouro e adorava e obedecia-me. O mais curioso é que eu, que odiava seus formosos olhos, era por eles que a amava. Ainda que sempre saísse vencido, voltava sempre a lutar contra essas terríveis pupilas, com a esperança de vencer. Quantas vezes as vermelhas fulgurações do amor me fizeram o efeito de cem canhonaços disparados contra meus nervos! Por amor próprio não quis revelar a Lina minha escravatura.
Nosso amor devia ter uma solução como têm todos: ou me casava com Lina ou rompia com ela. Este último era impossível, pois, tinha que me casar com Lina. O que me aterrorizava, na vida de casado, era a perduração desses olhos que iriam iluminar terrivelmente minha velhice. Quando se aproximava a época em que devia pedir a mão de Lina a seu pai, um rico armador, a obsessão dos olhos dela me era insuportável. De noite via-os fulgurar como brasas na escuridão de minha alcova; olhava o teto e ali estavam, terríveis e porfiados; olhava à parede e estavam incorporados ali; fechava os olhos e via-os colados sobre minhas pálpebras com uma tenacidade luminosa tal, que seu fulgor iluminava o tecido de artérias e filamentos da membrana. Ao fim, rendido, dormia, e os olhares de Lina enchiam meus sonhos de redes que se apertavam e me estrangulavam a alma. Que fazer? Formei mil planos; mas não sei se por orgulho, amor, ou por uma noção de dever muito gravada em meu espírito, jamais pensei em renunciar a Lina.

No dia em que a pedi, Lina ficou contentíssima. Oh, como brilhavam seus olhos e daí endiabradamente! Estreitei-a em meus braços delirante de amor, e ao beijar seus lábios sangrentos e mornos tive que fechar os olhos, quase desvanecido.
- Fecha os olhos, Lina minha, te peço!

Lina, surpreendida, abriu-os mais, e ao ver-me pálido e decomposto perguntou assustada, apanhando-me as mãos:
- O que você tem Jym?... Fala. Deus Santo!... Está doente? Fala.
- Não... Perdoa-me; não tenho nada, nada... - respondi-lhe sem olhá-la.
- Você está mentido, algo te aconteceu...
- Foi uma indisposição, Lina... Já passará...
- E por que queria que eu fechasse os olhos? Não quer que eu te olhe, meu bem.
Não respondi e a olhei medroso. Oh! Ali estava os olhos terríveis, com todos seus insuportáveis crepitares de surpresa, de amor e de inquietude. Lina, ao notar meu turbado silêncio, se alarmou mais. Curvou-se sobre meus joelhos, apanhou minha cabeça entre suas mãos e disse-me com violência:
- Não, Jym, você não me engana, algo estranho está acontecendo com você já faz algum tempo: você fez algo mau, pois só os que têm um peso na consciência não se atrevem a olhar de frente. Eu reconhecerei nos teus olhos, me olha, me olha.
Fechei os olhos e a beijei na testa.
- Não me beije, me olha, me olha.
- Oh, por Deus, Lina, deixa-me! ...
- E por que você não me olha? - insistiu quase chorando.
Eu sentia profunda pena de mortifica-la e ao mesmo tempo muita vergonha de lhe confessar minha sandice: - Não te olho, porque seus olhos me assassinam; porque tenho um medo terrível deles, que não entendo, nem posso reprimir. Calei, pois, e fui para minha casa, depois que Lina saiu do quarto chorando.
No dia seguinte, quando voltei para vê-la, me fizeram entrar em seu quarto: Lina tinha amanhecido doente com inflamação de garganta. Minha noiva estava na cama e o quarto quase às escuras. Quanto me alegrei disto! Sentei-me junto ao leito, falei-lhe apaixonadamente de meus projetos para o futuro. A noite tinha pensado que o melhor para que fôssemos felizes, era confessar meus ridículos sofrimentos. Talvez pudéssemos pôr-nos de acordo... Usando óculos escuros... Talvez. Depois que lhe contei minhas dores, Lina ficou um momento em silêncio.

- Bah, que tolice! - foi tudo o que contestou.
Durante vinte dias Lina não saiu da cama e tinha ordem do médico de que não me deixassem entrar. No dia em que Lina se levantou mandou me chamar. Faltavam poucos dias para nosso casamento, e já tinha recebido infinidade de presentes de seus amigos e parentes. Lina me chamou para mostrar-me o vestido de flor de laranjeira, que lhe tinham trazido durante sua doença, bem como os obséquios. O quarto esta envolto numa escura penumbra, na qual eu mal podia ver Lina; ela sentou-se em um sofá de costas à entornada janela, e começou a me mostrar braceletes, alianças, colares, vestidos, uma pomba de alabastro, pingentes, brincos e não sei quantas preciosidades. Ali estava o presente de seu pai, o velho armador: consistia em um pequeno iate de passeio, isto é, não estava o iate, senão o documento de propriedade; meus presentes também estavam e também o que Lina me dava, consistente em uma caixinha de cristal de rocha, forrada com veludo vermelho.

Lina alcançava-me, sorridente, os presentes e eu, com galanteria de apaixonado, lhe beijava a mão. Por fim, trémula, alcançou-me a caixinha.
- Olha à luz, - disse-me - são pedras preciosas, cujo brilho convém apreciar devidamente.

E abriu uma das folhas da janela. Abri a caixa e arrepiaram-me os cabelos de espanto; devo ter ficado monstruosamente pálido. Levantei a cabeça, horrorizado e vi Lina que me olhava fixamente com uns olhos negros, vidrosos e imóveis. Um sorriso, entre amorosa e irônica, dobrava os lábios de minha noiva, feitos com suco de morangos silvestres. Saltei desesperado e apanhei violentamente a mão de Lina.
- O que você fez, desgraçada?

- É meu presente de casamento! - respondeu tranquilamente.
Lina estava cega. Como hóspedes assustados estavam nas órbitas uns olhos de cristal, e os seus, os de minha Lina, esses olhos estranhos que tinham me mortificado tanto, olhavam-me ameaçadores e zombadores desde o fundo da caixa vermelha, com o mesmo olhar endiabrado de sempre...

Quando Jym terminou, ficamos todos em silêncio, profundamente emocionados. Na verdade a história era terrível. Jym pegou um copo de absinto e bebeu-o em um gole. Depois olhou-nos com ar melancólico. Meus amigos olhavam, pensativos, um a claraboia do camarote e o outro o lustre que se bamboleava aos balanços do navio. De repente, Jym soltou uma gargalhada zombadora, que caiu como um enorme chacoalhão no meio de nossas meditações.
- Homens de Deus! Vocês acham que exista alguma mulher capaz do sacrifício que lhes contei? Se os olhos de uma mulher lhe fazem algum dano, sabem como ela remediará? Pois, arrancando os de vocês para que não vejam os dela. Não; meus amigos, eu lhes contei uma história inverossímil cujo autor tenho a honra de apresentar.

E mostrou-nos, levantando bem alto, sua garrafinha de absinto, que parecia uma solução concentrada de esmeraldas.


[i] Christhianía = Christiania ou Cidade Livre de Christiania, comunidade independente e autogestionada em Copenhagen, Dinamarca.
[ii] Mefistófeles = personagem satânico da idade média aliado de Lúcifer.
[iii] Luzbel = outro nome de Lúcifer.
[iv] Mamangaba = espécie de abelha grande, peluda e que emite um zumbido ao voar.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Ficou a ver navios?


Humm...

Isso era o que faziam os portugueses esperando, do Alto de Santa Catarina, em Lisboa, o retorno do rei de Portugal, dom Sebastião, desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir. Dai então a lenda de que o rei voltaria e traria consigo um mundo melhor! A essa crença mística portuguesa deu-se o nome de sebastianismo.

Pensando bem “ficar a ver navios” tem, em sua origem, uma conotação de esperança e não de desesperança, assim como usamos frequentemente!!! “Ela ficou a ver navios na porta do cinema porque o namorado não apareceu”. Mas os portugueses acreditavam que D. Sebastião reapareceria numa manhã de nevoeiro... Ou seja: tinham fé!

Bem, mas esta é apenas uma das várias versões para a origem da expressão, como, aliás, acontece com várias outras e seu estudo exige tempo e disposição, pois frequentemente uma história levará a outra, ainda mais interessante, mas todas pouco confiáveis e continuamos A VER NAVIOS!

A sinestesia no clássico de Aluísio de Azevedo - “O Cortiço"

Sensações...

“Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da ultima guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia.
A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas.
Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saiam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia.”