quarta-feira, 13 de agosto de 2014

A presença espanhola

 
Aldo Bizzocchi é doutor em linguística pela USP. 
Autor de Léxico e Ideologia na Europa Ocidental (Annablume)
Para Revista Língua - Março de 2012.
 
Segundo dados da Wikipédia, o português é a quinta língua no mundo em número de falantes (somos mais de 270 milhões), a terceira no hemisfério ocidental e a primeira no hemisfério sul. Diferentemente do chinês, a língua mais falada, que se concentra na China, o português é falado oficialmente em oito países e mais algumas regiões autônomas, como Goa e Macau. Portugal já foi a sede de um dos maiores impérios coloniais da história, e o Brasil já é considerado a sexta maior economia do mundo. Língua pátria de alguns dos mais ilustres autores da literatura mundial, como Camões, Pessoa, Machado, Drummond, Jorge Amado, Saramago e Paulo Coelho, nosso idioma está presente em produtos midiáticos que fazem sucesso mundo afora, como a música popular e as telenovelas brasileiras. Sem falar da projeção do nosso carnaval e futebol. O português é, ainda, língua oficial da União Europeia, do Mercosul e de alguns organismos internacionais.
Atualmente, com a crise do euro e o espantoso crescimento econômico brasileiro, já há na Europa e nos Estados Unidos mais turistas falando português do que espanhol, francês ou italiano. Apesar de tudo isso, manuais de produtos estrangeiros raramente trazem instruções em português, assim como museus e atrações turísticas do exterior quase nunca dispõem de folhetos ou audioguias em nossa língua. Curiosamente, esses locais oferecem material em línguas muito menos difundidas, como holandês, polonês, russo, coreano.
O prêmio Nobel de Literatura já foi concedido a autores dos mais diversos idiomas. Elias Canetti, agraciado em 1981, nasceu na fronteira entre a Bulgária e a Romênia, tinha nacionalidade turca, búlgara, suíça e britânica, era falante nativo do ladino (dialeto espanhol) e escrevia em alemão. Tudo isso sendo judeu e tendo sobrenome italiano! Nada disso o impediu de ter seu talento reconhecido. No entanto, quando, em 1998, José Saramago venceu o Nobel, tornando-se - tardiamente - o primeiro escritor de expressão portuguesa a receber tal prêmio, parte da comunidade internacional reclamou da premiação, e não pela qualidade de sua obra, mas por ter ela sido escrita "numa língua menor".

Razões
Mas por que a última flor do Lácio é também tão desprezada apesar de sua importância? Sua complicada gramática normativa opõe algum entrave à aceitação internacional do idioma. Mas a meu ver o motivo principal não é esse. Trata-se da existência do espanhol. Há uma crença generalizada de que português e castelhano são línguas irmãs, quase gêmeas. E como a comunidade hispano-falante (a segunda maior do mundo) é mais numerosa que a lusófona, acredita-se que, ao fornecer manuais ou folhetos em espanhol, atende-se também aos falantes do português. Ledo engano!
Em primeiro lugar, as duas línguas têm muitas diferenças (estão mais distantes entre si do que o sueco e o norueguês, por exemplo), sobretudo no léxico. Textos em espanhol têm muitos termos opacos para nós, sem falar nos falsos cognatos, palavras de igual grafia mas de significados diversos (como confundir "copo" com "latrina", já que "vaso" significa uma coisa numa língua e outra coisa na outra).
Além disso, as grandes divergências fonéticas tornam o castelhano por vezes incompreensível. De certa forma, o italiano, irmão mais distante do português, chega a ser mais inteligível que o espanhol. É que os falantes desta língua omitem ou enfraquecem muitas consoantes e têm o hábito de falar depressa e aos soquinhos, com muitos chiados e ceceios, sobretudo na variedade europeia.
Por muito tempo o mundo desenvolvido (entenda-se europeus e americanos), pensou que o Brasil falasse espanhol e sua capital fosse Buenos Aires. A presença majoritária de colônias hispânicas na América nos isolou. Embora seja o mais importante país latino-americano, o Brasil é a única nação de língua portuguesa das Américas. Porém, a comunidade hispano-americana, ainda que maior, está fragmentada em muitas nações, nenhuma das quais tem maior projeção mundial.
Ao mesmo tempo, Portugal, no extremo oeste da Europa, com seu território minúsculo e cercado de Espanha por todos os lados (pelo menos os terrestres), também sofreu a concorrência de uma cultura, se não superior, pelo menos mais difundida, com seus Cervantes, El Grecos, Velázquez, Góngoras, Goyas, Picassos, Mirós, Dalís, Casals, Buñuels, Gaudís, Balenciagas, Almodóvares. E de um estado mais poderoso, com sua invencível armada e soberanos multinacionais como Carlos V.

Equívocos
Na verdade, o Brasil e sua cultura só vêm se tornando populares no resto do mundo há pouco mais de uma década. Por isso, muitos estrangeiros já sabem que aqui não se diz muchas gracias nem buenos días, mas seu conhecimento sobre nossa língua não vai muito além disso. É patético ver um estrangeiro esforçando-se por falar português misturando espanholismos e pseudoespanholismos, em grande parte deduzidos da suposta semelhança entre os dois idiomas, como dizer "obra mestra" no lugar de "obra-prima" por equivocada analogia com o espanhol obra maestra.
Além de tudo, vemos pouco engajamento dos governos português e brasileiro em exigir respeito por nossa língua. O ensino de castelhano é obrigatório nas escolas brasileiras, mas o de português não o é na maioria dos países hispânicos. Comerciais produzidos no exterior, alguns falados e escritos em inglês, passam impunemente em nossa televisão, para desespero e desemprego de nossos publicitários.

Exigências
No afã de exportarmos nossos produtos (em tempos de globalização exportar é o que importa), cumprimos as exigências de nossos clientes externos, inclusive vertendo para suas línguas todas as informações respectivas, mas não temos a mesma exigência em relação ao que importamos. Alguns manuais de instruções em português redigidos por chineses são um verdadeiro desacato.
Parece que nosso complexo de vira-latas, de que falava Nelson Rodrigues, nos faz crer que nosso idioma é de fato inferior e que bonito mesmo é falar inglês. (Houve até um presidente brasileiro, de triste memória, que discursou em inglês na ONU para demonstrar sua erudição - e nossa subserviência.) Em resumo, parece que o grande azar do português é ter um vizinho, aqui e na Europa, irmão muito próximo, embora não tão parecido, chamado espanhol. Irmão de maior prestígio, espécie de irmão mais velho que sufoca a emancipação do caçula, nessa família de muitos irmãos chamada latinidade.



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