quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O tradutor é um transfigurador

Haroldo de Campos
 
Ultimamente o assunto tradução tem estado presente na imprensa diária e variados veículos literários. A técnica da abordagem tem sido praticamente a mesma, como se eventuais problemas é estivessem sendo descobertos agora. Mas para quebrar essa rotina, é que a revista carioca 34 Letras n.º3, março, 1989, ótimo objeto trimestral de cultura destinado a estudiosos da área de ciências humanas em geral e, particularmente, a pessoas interessadas em criação e crítica literária, muito oportunamente propõe uma discussão sobre o assunto. Esse número está dedicado em grande parte à questão da tradução (p.76-159), cujo tema diverge do ponto de vista de alguns dos mais respeitados profissionais da área: Hamlet- a tradução, Millôr Fernandes; Da Tradução à transficcionalidade, Haroldo de Campos (1929 -2001) A difícil vida fácil de tradutor, Paulo Henrique Brito; Broch, traduzido, Jean-Michel Rabaté; Interferência-um problema de tradução, Geir Campos; O Texto e sua sombra (teses sobre a teoria da introdução), Nelson Ascher. Além dos ensaios com uma visão mais poética da questão assinada pelos escritores: Novalis, Ana Cristina César, Octavio Paz, Jorge Luís Borges e Sebastião Uchoa Leite. E para esquentar ainda mais o tema, a Editora Ática lançou em convênio com a Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo, 1990, a coletânea de ensaios Tradução a Ponte Necessária (aspectos e problemas da arte de traduzir) de José Paulo Paes (1926-1998), um dos mais notáveis tradutores em atividade no país, com larga experiência e grande produção, além de renomado ensaísta e poeta. E como não poderia deixar de dar sua contribuição a essa questão, a revista Exu da Fundação Casa de Jorge Amado, numa edição especial belíssima dedicada também à tradução, reúne em seu número 16/17 (jul/out), 1990, colaborações do Brasil e do exterior, e editando-as conjuntamente – traduções, estudos críticos, contos e poesias.
Embora existisse uma antiga polêmica sobre o conceito de tradução como ciência ou arte, com o desenvolvimento do estruturalismo, foi possível levantar sérias dúvidas quanto à possibilidade teórica da tradução. E mais recentemente por John Cunnison Catford (Uma teoria linguística da tradução. São Paulo, Ed. Cultrix, 1980), que considerava a teoria da tradução uma teoria da linguística aplicada, achando muito difícil traçar limites para a possibilidade de tradução, pois o ato de traduzir é uma operação relativamente possível e absolutamente indispensável, necessária. Mas, considera (linguísticos e culturas) como traços relevantes às dificuldades básicas para o tradutor. Para o poeta da linguística Roman Jakobson (Aspectos linguísticos da tradução, in Linguística e Comunicação 1. O signo verbal pode ser traduzido em outros signos da mesma língua, em outra língua, ou em outro sistema de símbolos não – verbais, apesar da rara existência de obstáculos poéticos: a tradução intralingual ou reformulação, tradução interlingual ou tradução propriamente dita e a tradução intersemiótica ou transmutação. Apesar de, quase na sua totalidade, livros de linguística não reservarem qualquer capítulo sobre os problemas da tradução, parece haver por parte destes um desinteresse total, não sabendo que a tradução é de fato uma operação linguística. Até mesmo no índice do (Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem, O. Ducrot e T. Todorov, faz constar à tradução. 2 Entre nós, ainda carece uma bibliografia mesmo que razoável acerca deste assunto.
Escrever sobre tradução é mergulhar numa problemática que não se resume apenas ao ato de traduzir, mas constitui um permanente desafio, tanto para os críticos como para os tradutores. Tradução de acordo com a etimologia latina (traductione) é o ato ou efeito de conduzir além de, transferir, um texto ou dito de uma língua para outra, ou seja, é o processo de converter uma linguagem em outra. A própria palavra tradução é um termo ambíguo, sendo as mais usadas: justalinear (aquela em que o texto de cada linha vai traduzido ao lado, ou na linha imediata), literal (a que é feita ao pé da letra) e livre (a que se atém às palavras do texto original, opondo-se à tradução literal). Tradutor é aquele que torna compreensível àquilo que antes era ininteligível; por isso, o primeiro tradutor foi o hermeneuta, a quem cabia traduzir em linguagem humana a vontade divina, permitia a comunicação em plano vertical, entre Deus e os homens. O tradutor de hoje pode enriquecer o texto por sua própria conta, modernizando violentamente a dicção, criando neologismos, intensificando a trama sonora, enxertando elementos de sua própria realidade cultural, transformando-se, enfim, em parceiro do autor traduzido. A tradução, o novo texto, a recriação alarga o círculo de objetivos do texto precedente, cujo autor não consegue prever todos os efeitos daquilo que escreveu e que pode aparecer numa nova roupagem de outro idioma.
Porque a função do tradutor é estar em perfeitas condições de avaliar a preservação dos efeitos textuais, em outras palavras; ao ler uma tradução, o leitor não pensa de saída no original, que ele geralmente não conhece nem pode entender. Vivemos num mundo em tradução, graças ao progresso tecnológico no campo da comunicação, que viabiliza a troca de informações entre os pontos mais remotos da terra, com rapidez jamais vista. A tradução é uma operação que se realiza nas línguas; um processo de substituição de um texto numa língua por um texto em outra, é uma atividade de grande importância no mundo moderno, não apenas para linguísticas, tradutores (profissionais e amadores) e professores de línguas, mas também para engenheiros eletrônicos e matemáticos. Qualquer tradutor digno deste nome, conhece um certo número de verdades evidentes e incontestáveis quanto à natureza da linguagem humana, que a maior parte dos linguistas, hoje em dia, parece ignorar ou ter esquecido. Cada página a traduzir traz ao tradutor novas provas que o convence de que a confrontação, operada no seu cérebro, dos dois sistemas de formas e de estruturas instrumentais é, afinal, a de dois polissistemas.
O documento mais famoso que se conhece da atividade tradutória na Antiguidade é a Pedra de Rosetta, um fragmento de basalto encontrado em 1799 nas escavações que se faziam numa região próximo ao rio Nilo. Na Pedra, datada do século II a. C., vê-se um mesmo texto grafado de três maneiras diferentes; em hieróglifos da escrita sagrada do antigo Egito, em caracteres da língua escrita popular egípcia da época, e em caracteres gregos. Foi a partir do estudo dessa pedra que Jean- François Champollion começou a decifrar os hieróglifos do Antigo Egito, mas sabe-se que o imperador Sharrukin, da Assíria, três séculos antes da era cristã, já gostava de ter seus feitos divulgados por escrito em todas as línguas que se falavam no seu vasto império. Entre os babilônicos, assírios e hititas existiam organizações de escribas especializados, que escreviam em línguas diversas, sabe-se também que no Antigo Império Egípcio (2778-2160 a. C.) existiu o cargo público de "intérprete- chefe" e que na Ásia Menor circulavam ou existiam glossário bilíngues ou plurilíngues em tabuletas de terracota. A primeira determinação legal de tradução ocorreu no ano 146 em Roma, quando o Senado romano mandou traduzir o tratado de agricultura do cartaginês Magão. No século I antes da era cristã, o romano Cícero refere-se à tradução que ele mesmo fez dos Discursos do grego Demóstenes. Cabe também mencionar a famosa Versão dos Setenta, que teve o texto do Antigo Testamento traduzido do hebraico para o grego por setenta e dois sábios do Egito, por ordem do seu rei Ptolomeu Filadelfo. Durante a Idade Média, a tradução esteve a serviço da catequese religiosa e não faltou quem dissesse que "cristianizar equivale a traduzir". As ideias passaram a ter maiores possibilidades de circulação graças à invenção do prelo por Gutenberg em 1440, quando a imprensa facilitava a reprodução do mesmo texto em muito maior número de cópias.
"Nenhuma ditadura termina no dia em que os ditadores caem, assim como alguma profunda infecção não se cura com a primeira dose de antibiótico, é preciso mais, tem que haver continuidade no tratamento, atenção e persistência". O que está acontecendo com as traduções no país, é mais um exemplo de como detectamos o resíduo das ditaduras após sua extinção oficial, em vários seguimentos sociais, que, pela escala da gravidade, não se mede pela aparência de um outro caso, e sim por seu significado dentro do contexto. Dizem que no Brasil os tradutores via de regra, traduzem mal. Em compensação, também ganham muito mal, e os contratos normalmente não dão aos tradutores, porcentagens nas vendas nem direitos quanto à reedição dos textos. E, nesse sentido, falta muito para o Brasil avançar, reconhecer o trabalho de tradução como um trabalho qualquer, que deve ser remunerado com dignidade. As editoras, por sua vez, alegam ser impossível aumentar a remuneração dos tradutores, pois os gastos com tradução significam cerca de 4% do preço de capa do livro, valor considerado muito alto em relação aos custos de composição, impressão e de papel. Por isso, as condições de mercado não propiciam que se faça uma boa tradução, pois é preciso fazer um trabalho apressado para sobreviver. Um esforço pessoal exaustivo e em geral pouco ou nada compensador, do ponto de vista econômico.
Traduzir é uma arte. O grande tradutor é um artista que não vem sendo reconhecido como tal. O desrespeito é tamanho que raras são as oportunidades que dão ao tradutor para rever o texto traduzido antes de sua composição final, para discutir a revisão. O que geralmente acontece é ele receber o exemplar já impresso, com alterações em diversos trechos, troca de títulos por outro, erros de concordância, corte de períodos inteiros e substituição de palavras de forma inexplicável, etc. Mais de 90% dessas traduções, em sua maioria foram traídas pela armadilha dos editores inescrupulosos. Sem nenhuma dúvida que as condições contratuais da tradução, afetam a qualidade intrínseca do texto, alguns dos tradutores mais atuantes, chegam a entregar ao editor, em média um livro por semana. Para haver uma tradução de boa qualidade, com sensibilidade literária apurada, em primeiro lugar é preciso estabelecer um prazo adequado para a entrega do texto. Segundo, é conscientizar o trabalho do perfeito domínio e conhecimento das nuances dos idiomas fonte e objeto .
De certo modo, hoje, no Brasil, só pode ser tradutor quem não precisa ser tradutor. Até mesmo alguns dos nossos melhores tradutores não estão traduzindo. Mas os erros de tradução, não são privilégio somente de brasileiros, até os santos erram: ao traduzir a Bíblia para o latim, São Gerônimo confundiu-se e fez com que Moisés descesse do Monte Sinai, carregando as Tábuas da Lei, com dois "chifres de luz" na cabeça, - quando na realidade o profeta tinha dois "fachos de luz" a encimá-lo. O grande pintor italiano Michelangelo acreditou no santo e fez a famosa estátua de Moisés com dois chifres. 3 Os desvios que surgem sempre, mesmo nas melhores recriações, realizadas por tradutores excelentes, são motivados pelas diferenças existentes entre as várias línguas entre o autor e o tradutor e pela distinta situação literária, dominante num e noutro campo linguístico. Na tradução cabe ao responsável a importante e por vezes difícil decisão de determinar a convivência ou não de serem conservados tais desvios, pois cada idioma possui suas peculiaridade de construção, as normas que o regem, e que não se aplicam a mais língua nenhuma. É claro que nas traduções em versos os desvios muitas vezes se explicam pelas exigências da métrica e da rima.
Os principais problemas teóricos que envolvem o ato tradutório, tais como: o que acontece quando traduzimos um texto? A que devemos ser fiéis quando realizamos uma tradução? Sobre os pontos de vista teórico e prático, é possível traduzirmos com sucesso textos literários e poéticos?- Está bem claro que traduzir não significa exclusivamente substituir palavras de um idioma por palavras do outro, mas transferir o conteúdo de um texto, decodificando apropriadamente as informações contidas no original, e a sua conversão em código equivalem na língua para qual traduz. Portanto o tradutor terá de dispor do conhecimento suficiente para entender os termos específicos do original e dominar os equivalentes no próprio idioma. Sobre o ofício e a arte de traduzir, disse o poeta/ ensaísta mexicano Octávio Paz que "todo texto é único e é, ao mesmo tempo, a tradução de outro. Nenhum texto é completamente original porque a própria língua, em sua essência, já é uma tradução: em primeiro lugar, do mundo não- verbal e, em segundo, porque todo signo, toda frase é a tradução de outro signo e de outra frase". 4
Em pleno século XX os teóricos e práticos da tradução de todo mundo, continuam a discutir e a divergir, como desde a Antiguidade, sem que se tenha chegado ainda a consenso sobre o assunto. A crescente importância da tradução neste século pode ser observada em toda parte, basta consultarmos o Index Translationen iniciado em 1932, que já em 1970, segundo estatística deste volume, apresentava 41.332 traduções; das quais 5.932 foram realizadas para o alemão, 3.580 para o russo, 2.944 para o espanhol, 2.569 para o inglês, 2.069 para o japonês e 1.918 para o francês. Conforme o Anuário Estatístico do IBGE de 1985, tendo como ano base 1983, no Brasil foram traduzidos 2.317 títulos, num total de vinte milhões e oitenta e dois mil exemplares impressos. Entre nós, os melhores tradutores de poesia e teóricos do assunto, destacam-se os poetas concretistas, Augusto de Campos (De Ulysses a Ulisses, in Panorama do Finnegans Wake. 5; A língua do pó, in O Anticrítico. 6 e Haroldo de Campos (A Poética da Tradução, in A Arte no Horizonte do Provável.7; Da tradução como Criação e como Crítica, in Metelinguagem. 8; Ideograma, Anagrama, Diagrama - uma leitura de Fenolhosa (V- a Prova pela Tradução), in Ideograma – lógica. Poesia. Linguagem. 9. Que ao longo desses quarenta anos de atividade vem preenchendo uma lacuna substancial na formação intelectual brasileira, como uma técnica de alta precisão, produção espantosa e diversificada, traduzida do inglês, francês, italiano, latim, provençal, russo, hebraico, alemão, japonês, espanhol, chinês entre outros. Conservando sempre a matriz Ezra Pound, que adotou o lema confunciano MAKE IT NEW (renovar), para dar nova vida ao passado literário via tradução e através dessas incursões é que os irmãos Campos, dão sua contribuição máxima à moderna poesia, com sua extraordinária liberdade em suas recriações (transcriações).
Por exemplo, confira Traduzir, Trovar, Augusto e Haroldo de Campos. 10 Um trabalho excelente, de perícia profissional, com um estilo reconhecível em português que faz o eco aos originais. Há pessoas corajosas que colocam os textos no original e outros em qualquer idioma, lado a lado e desenvolveram seu próprio método de ginástica para montar as duas plataformas. Porque em qualquer das duas línguas, o tradutor terá que ler com uma espécie de fé paciente. Pois requer dele, uma iniciação a estranhos movimentos físicos e mentais, desenvolvidos por outra cultura, - um compasso uniforme, vagaroso, sem a tensão de prazos estabelecidos. E essa busca cria uma estação da mente fora dos limites temporais, e isso pode levar meses e até anos. Segundo Haroldo de Campos, traduzir poesia há de ser criar-re-criar -, sob pena de esterilização e petrificação, o que é pior do que a alternativa de "trair".



NOTAS


1.                       Lingüística e comunicação, Roman Jakobson. São Paulo, Ed. Cultrix, trad. José Paulo Paes e Izidoro Blikstein, 1974.
2.                       Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem,  Ducrot e T. Todorov. São Paulo, Ed. Perspectiva, trad. Alice Kyoko Miyashiro, J. Guinsburg e Mary Amazonas Leite de Barros, 1977.
3.                       Revista Veja. São Paulo, 20. jul, 1988.
4.                       Traducción: Literatura y Literalidade, Octavio Paz. Barcelona, Jusquets, 1981.
5.                       Panorama do Finnegans Wake, augusto e Haroldo de Campos. São Paulo, Ed. Perspectiva, col. Signos, nº1, 1971.
6.                       O Anticrítico, Augusto de Campos. São Paulo, Companhia das Letras, 1986.
7.                       A Arte no Horizonte do Provável, Haroldo de Campos. São Paulo, Ed. Perspectiva, col. Debates nº16, 2ª ed. 1972.
8.                       Metalinguagem, Haroldo de Campos. São Paulo, Editora Cultrix, 3ª ed. 1976.
9.                       Ideograma-Logica. Poesia. Linguagem, Haroldo de Campos. São Paulo, Ed. Cultrix, 1977.
10.                   Traduzir. Trovar, Augusto de Campos. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1968.

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