sábado, 14 de outubro de 2017

O Tietê


De tarde, quando o sol poucos brilhos expande,

Sozinho, a meditar em tanto não sei quê,

Tomo o rumo da Luz, vou até á Ponte Grande,

A fim de conversar com o meu velho Tietê...

 

A cabeça recosto, e, por cima da grade,

Vejo as aguas em todo o seu largo trajeto;

Então, ele me conta a história da Cidade,

Como um velho guerreiro a distrair o neto...

 

Cofiando lentamente a barba de cem anos,

O bom velho me conta essa história, e também

Fala do tempo de hoje e dos seus desenganos,

Mas não fica zangado e não xinga ninguém.

 

Refere-se ás Monções que ele, soberbamente,

Tantas vezes levou, na faina das conquistas,

Escutando pulsar o coração valente

Daquela geração de valentes paulistas!

 

Tempo em que, num tropel, num bizarro alvoroço

De armas e embarcações, como agora não ha,

Partiu para o sertão, rumo de Matogrosso,

Paschoal Moreira, fundador de Cuiabá.

 

E a Cidade crescia. Ora os pais em que pensam?

Ele vendo-a crescer, dava-lhe mais ternura,

Quando a filha jovial vinha pedir-lhe a bênção;

Mas agora cresceu; nunca mais o procura!

 

E por isso, arrastando o lamento das aguas,

De parcel em parcel, de cachão em cachão,

Vai levando no seio outro rio de mágoas,

Ao qual não sobre doura a espuma da ilusão.

 

Meu ingênuo Tietê! o progresso o apavora!

Por toda a parte vê traves e encanamento,

 E, por isso, a tremer, todo nervoso, implora

Que lhe não vão tapar o azul do firmamento !

 

Que importa a ingratidão da Cidade querida,

Que, de longe, lhe mostra os altivos torreões?

Enquanto ele tiver uma gota de vida

Ha de beijar-lhe os pés, cheio de comoções!

 

Tem saudades também o desditoso Rio!

E então a sua voz é de cortar rochedo,

Quando, quase a chorar, num longo murmúrio,

Começa a recitar Alvares de Azevedo I

 

Muitas vezes aqui, sob a calma divina

De um divino luar, cândido como um véu,

Castro Alves, levantando a cabeça leonina,

Se punha a interpelar as estrelas do céu!

 

Mas agora só escuta uma horrenda algarvia,

No bárbaro vozeio dos bandos invasores.

Oh tempos de Albuquerque! oh pobreza e alegria,

Quando Piratininga era um cabaz de flores!

 

Então, remos ao léu, descia a serenata,

Em macio langor, em macio langor...

E uma voz de mulher, como um jorro de prata,

Espalhava no ambiente um queixume de amor.

 

A' margem da corrente, uma gostosa sombra

Descia dos bambus, arqueados de indolência ;

E dois noivos, ali, na doçura da alfombra,

Abriam a alma em flor, como um vidro de essência.

 

Antes nunca deixasse o veio transparente

Em que um dia nasceu e até hoje bem diz !

Ah corrente fatal! Ah teimosa corrente,

Que o fez grande de mais para ser infeliz!

Os bandeirantes

Batista Cepelos (1906)









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