segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

A DISTÂNCIA ENTRE LÍNGUA E DIALETO

Uma das distinções mais nebulosas da lingüística continua criando polêmica entre os curiosos
 
Prof. Dr. Aldo Bizzocchi*
para a Revista Língua Portuguesa, ano 2, n. 14, dez. 2006
 
mantida grafia do texto original
 
 
O Brasil, freqüentemente se diz, é um país de sorte porque, apesar das dimensões continentais, aqui não há dialetos – todos falamos a mesma língua. Também é comum ouvir que as línguas européias têm muitos dialetos ou que na África as línguas oficiais (dos colonizadores) convivem com dialetos nativos. O que é, então, língua e dialeto?
Para o lingüista Max Weinreich, “língua é um dialeto com um exército e uma marinha”. Não está longe da verdade. Afinal, a tradicional distinção entre língua e dialeto está fundada em critérios mais políticos do que lingüísticos.
Língua é um sistema de comunicação formado de sons vocais (fonemas), que se agrupam para formar unidades dotadas de significado (morfemas), que se agrupam para formar palavras, que se agrupam (ih, ficou monótono!) para formar frases, que se agrupam para formar textos.
Do ponto de vista estritamente lingüístico não há nada que distinga língua de dialeto. Ambos os sistemas têm léxico (um inventário de palavras) e gramática (conjunto de regras de como as palavras se combinam para formar frases, parágrafos e textos). Quem fala um idioma nacional e um dialeto regional é tão bilíngüe quanto quem fala dois idiomas. Então por que alguns sistemas são chamados de idiomas e outros, não?
Dialeto vem do grego diálektos, composto de diá, “através”, e léktos, “fala”. Seria, segundo alguns, uma espécie de fala “atravessada”, um linguajar defeituoso, não conforme às normas do falar estabelecidas pelos gramáticos. A primeira definição de dialeto (que, por sinal, teria inspirado as posteriores) baseava-se numa visão preconceituosa que a elite ateniense do período clássico tinha em relação à fala tanto das camadas populares quanto dos estrangeiros (não-atenienses, inclusive gregos de cidades vizinhas).
Hoje, costuma-se chamar de dialeto qualquer expressão lingüística que não seja reconhecida como língua oficial de um país. Assim, um dialeto pode ser tanto uma variedade lingüística regional do idioma oficial quanto uma língua sem qualquer parentesco com ele.
O occitano (ou provençal) e o bretão, falados na França, são tidos como dialetos. O primeiro é língua românica aparentada ao francês, que já produziu uma esplêndida literatura em tempos atrás. Já o bretão é uma língua pertencente à família celta, sem parentesco direto com o francês. Hoje, ambas são usadas, em escala regional e paralelamente ao francês, na conversação diária e na comunicação de massa.
Em geral, o que faz uma língua ser considerada dialeto e não idioma é a ausência de literatura ou de tradição literária, o seu não-reconhecimento pelo Estado ou mesmo a sua falta de prestígio. Alguns dialetos reúnem essas três condições, mas basta que uma esteja presente para que um falar regional veja irem por água abaixo suas aspirações de ser língua.
Em relação à presença de literatura, é preciso lembrar que algumas línguas ágrafas, como as nativas da África e da América, têm rica literatura oral, transmitida por gerações em séculos. Mas, para as línguas européias, ciosas de sua tradição escrita, elas não possuem literatura simplesmente por não produzirem livros.
 
Critérios
O reconhecimento de uma variedade lingüística como língua é questão meramente política. O catalão foi reconhecido pela Espanha como língua oficial, ao lado do castelhano, galego e basco, depois de ter sido violentamente reprimido pela ditadura franquista. Em Barcelona, é possível comprar edições bilíngües de diários como El Periódico de Catalunya, em catalão e espanhol, cem páginas cada. Sua língua-irmã, o occitano, não é reconhecida pelo governo francês, que teme onda de separatismo, já que o reconhecimento de uma língua é o primeiro passo para a afirmação de nacionalidade.
A questão mais delicada é a que diz respeito ao “prestígio” de uma variedade. Alguns falares, mesmo próximos da língua-padrão, são estigmatizados por motivos históricos ou sociais. No Brasil, que busca lugar no olimpo do Primeiro Mundo, tudo o que lembre o passado rural é alvo de desprezo. Daí o preconceito contra o dialeto caipira e o nordestino, eleitos como ícones do atraso cultural.
Na tentativa de estabelecer distinção entre língua e dialeto que não se apoiasse em fatores políticos ou sociológicos, alguns buscaram critérios relacionados aos aspectos comunicacionais. O lingüista romeno Eugenio Coseriu propôs o chamado critério da intercompreensão, segundo o qual dois falares podem ser considerados dialetos da mesma língua se seus falantes conseguem compreender-se mutuamente; caso contrário, teremos duas línguas diferentes.
Esse critério não é muito bom, porque se apóia num dado subjetivo: o grau de intercompreensão entre falantes. Falantes do português e do espanhol podem entender-se relativamente, portanto seriam dialetos, segundo Coseriu. Já o português e o francês seriam línguas distintas, de acordo com o mesmo critério. Mas e o italiano em relação ao português?
 
Irmãos separados
Como os falares vão diferindo pouco a pouco à medida que nos deslocamos num dado território, é natural que a comunicação entre moradores de duas aldeias vizinhas seja total, ao passo que o diálogo entre habitantes de cidades distantes milhares de quilômetros é quase impossível.
Além disso, esse critério era válido enquanto a escolarização e os meios de comunicação não uniformizaram a linguagem nos territórios nacionais. Na Idade Média, quem viajasse de Paris a Florença percebia a lenta mudança que os falares sofriam no caminho, sem ruptura ou descontinuidade. Hoje, o francês de Paris e o italiano de Florença, idiomas oficiais da França e da Itália, convivem na fronteira entre esses dois países.
Estima-se que nos próximos cem anos 90% das línguas desaparecerão, a maioria por não ter o status de idiomas nacionais, sendo em muitos casos línguas ágrafas, de comunidades tribais. A causa dessa extinção em massa de línguas é a pressão dos idiomas de cultura, seja o idioma nacional do país, seja o inglês como língua global. Nas comunidades tribais da África e da América, o imperialismo lingüístico-cultural branco tem mais um forte aliado: os pregadores religiosos de seitas cristãs fundamentalistas, que combatem não só as crenças mas também as línguas dos nativos como “coisa do diabo”. Ou seja, hoje em dia língua também é um dialeto com um missionário.
 
Ciências do dialeto
O abuso da palavra dialeto criou a expressão “dialetos sociais” (mais adequadamente chamados de socioletos) para designar as diferentes normas segundo as quais se expressam os diversos setores da sociedade (classes sociais, grupos profissionais, segmentos identificados por sexo, faixa etária, tendência política, credo religioso, interesses pessoais, etc.).
A disciplina que estuda a variação geográfica da língua se chama dialetologia, geografia lingüística ou simplesmente geolingüística.
Já a ciência que estuda os socioletos é a sociolingüística.
 
Como surgem os dialetos
Já se disse que línguas são organismos vivos, que nascem, crescem, se reproduzem e morrem. Na verdade, poderiam ser comparadas com mais propriedade a espécies biológicas. Cada ato de fala ou escrita do português seria um espécime da espécie chamada língua portuguesa.
E, assim como acontece com as espécies biológicas, os idiomas evoluem, sucedendo às vezes de uma língua tornar-se duas ou mais, ou extinguir-se sem deixar descendentes. Sua tendência natural é evoluir e fragmentar-se. Quando isso não ocorre, ou ocorre lentamente, é porque uma força (por exemplo, a escola) está agindo em sentido oposto.
As línguas evoluem por mutação. Pequenas alterações na pronúncia, na gramática ou no léxico (mudanças de sentido, novas palavras) ocorrem o tempo todo.
Essas mutações se acumulam e ocorrem simultaneamente, mas com resultados diferentes, em todo um território. A distância geográfica, e a ausência ou dificuldade de comunicação entre os habitantes de regiões distintas, faz com que, ao fim de um período, os falares das regiões estejam bem diferentes entre si.
Outro fator de dialetação é o substrato lingüístico. Quando o português chegou, havia vários idiomas indígenas no Brasil. Ele se impôs como idioma oficial e de cultura, mas resquícios dos demais ficaram “por baixo” dele, influenciando, em cada região, o vocabulário e a pronúncia.
Há casos em que a diferenciação regional chega a ser tanta que leva à mútua incompreensão. Se as mutações não só alterarem o falar local como se propagarem para localidades vizinhas, como ondas, a superposição dessas “ondas” de inovações dará ao mapa lingüístico de um país o aspecto de uma colcha de retalhos.
 
De dialeto a língua-padrão
As línguas nacionais são dialetos que conquistaram prestígio em relação aos demais, porque produziram importante literatura ou eram os dialetos falados pela classe dominante.
A língua oficial de uma nação tende a ser o dialeto da capital. Por isso, os falares regionais não são dialetos da língua oficial. São dialetos de sua língua-mãe.
O napolitano não é dialeto do italiano (isto é, florentino): na verdade, os dois são versões atuais de dialetos do latim vulgar falado no primeiro milênio da nossa era.
Como alguns dialetos se distanciam mais do que outros em relação à língua de origem, muitos deles representam estados mais antigos de uma língua, que ainda conservam traços já desaparecidos na língua-padrão.
Quando uma nação se forma, isto é, cria consciência nacional, desenvolve uma língua nacional. Ela é baseada no dialeto de maior prestígio, mas recebe contribuições de outros dialetos e vira uma espécie de koiné, compreensível em maior ou menor grau por todos os cidadãos.
A língua-padrão passa a ser ensinada nas escolas e, com a comunicação de massa, veiculada na mídia. Isso, aliado ao prestígio e à possibilidade de ascensão social permitida pelo domínio do padrão, faz com que falares regionais tendam a sumir.
A língua-padrão é sujeita à regulamentação da gramática normativa, o que lhe dá caráter conservador e refreia parte da tendência natural à evolução. O português oficial é fundamentalmente o dialeto lisboeta, que suplantou o galaico-português dos primeiros séculos da história lusitana, enriquecido por outros dialetos portugueses e idiomas.
Exemplo de invenção de uma língua-padrão é o nynorsk, o neonorueguês, criada no século 19 com base em dialetos da Noruega, por oposição ao norueguês oficial, muito influenciado pelo dinamarquês. Hoje, ambas são oficiais no país.

(*) Bacharel em Linguística pela Universidade de São Paulo (1987), doutor em Semiótica e Linguística Geral pela Universidade de São Paulo (1994), com pós-doutorado em Linguística pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2010), membro do Grupo de Pesquisa em Semiótica, Leitura e Produção de Textos (SELEPROT), do Grupo de Pesquisa Morfologia Histórica do Português (GMHP) e do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa (NEHiLP). Tem experiência nos campos da Linguística e da Língua Portuguesa, atuando nas áreas da Linguística (Geral, Histórica, Comparada, Românica, Fonologia Contrastiva), Filologia, Semiótica (Sociossemiótica e Semiótica Cognitiva) e Teoria da Cultura. (texto extraído do currículo lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/5008533319059621)

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