António Sousa Ribeiro foi distinguido com o Grande Prémio de Tradução
Literária pela tradução de “Os Últimos Dias da Humanidade”, de Karl Kraus. “As
línguas são incomensuráveis. São diferentes, portanto, à partida, a tradução é
impossível. Toda a tradução assenta neste paradoxo da intraduzibilidade”, diz o
investigador.
Traduz nas horas vagas. São as horas em que deixa de ser professor,
coordenador de doutoramentos, investigador no Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra, e passa a ser um tradutor, isto é, alguém que luta com
a impossibilidade da sua própria tarefa, com a imperfeição, com o indizível. No
caso de uma obra como "Os Últimos Dias da Humanidade", de Karl Kraus,
com que ganhou no mês passado o Grande Prémio de Tradução Literária, da
Associação Portuguesa de Tradutores (APT), as horas têm de ser imersivas, quase
obsessivas. São centenas de páginas, 210 cenas de um texto dramático impossível
de ser totalmente representado. São horas e horas a pensar na forma como uma
sociedade pode aderir à violência. É a grande obra sobre a Primeira Grande
Guerra e marca o fim de uma era, possivelmente o princípio da nossa, em que
adquirimos novas tecnologias, mas mantemos velhas ideias sobre heroísmo e velhos
ódios.
1. São 210 cenas, 700 páginas na edição alemã. Consegui, com a
colaboração da Antígona, publicar uma edição de cenas seleccionadas em 2003. Há
muito tempo que tinha o projecto de traduzir toda a obra, mas ninguém traduz
uma obra deste tipo para a gaveta. Quando o Teatro Nacional de São João decidiu
avançar com o projecto [de encenar "Os Últimos Dias da Humanidade"],
contactaram-me para traduzir o que faltava. Era ainda muito, cerca de metade.
Traduzir é um trabalho fascinante. A minha dificuldade era satisfazer as minhas obrigações, que não são poucas, como investigador e docente, quando muitas vezes o que me apetecia era estar fechado em casa a traduzir.
Traduzir é um trabalho fascinante. A minha dificuldade era satisfazer as minhas obrigações, que não são poucas, como investigador e docente, quando muitas vezes o que me apetecia era estar fechado em casa a traduzir.
É preciso uma imersão. Uma pessoa tem de estar quase possuída por
aquelas vozes. Eu andava pela casa a recitar aqueles vozes. É uma forma de
possessão. Uma pessoa tem de estar possuída pelo texto original para depois,
pouco a pouco, ir construindo o que o texto pode ser noutra língua.
As línguas são incomensuráveis. Portanto, à partida, a tradução é
impossível. Toda a tradução assenta neste paradoxo da intraduzibilidade.
Quando falo de tradução aos meus alunos, começo por lhes dizer que, na
raiz de todo o acto de tradução, está a impossibilidade da tradução. Porque as
línguas são incomensuráveis. São diferentes, portanto, à partida, a tradução é
impossível. Toda a tradução assenta neste paradoxo da intraduzibilidade. Para
mim, a tradução é quase uma luta. Luta para quê? Para vencer este pressuposto
da intraduzibilidade.
Uma tradução é uma reescrita. Como costumo dizer, a versão portuguesa
de "Os Últimos Dias da Humanidade" é de Karl Kraus e minha. Há um
autor americano de estudos de tradução que tem um livro justamente sobre a
invisibilidade do tradutor, sobre concepções de tradução em que o tradutor se
torna invisível, como se o texto, por um milagre qualquer, passasse de uma
língua para outra. O tradutor está lá e o tradutor não se limita a servir de
ponte. O tradutor interfere.
Existir um prémio de tradução é bom, justamente para vencer esta
invisibilidade. São muito poucas ainda as editoras que colocam o nome do
tradutor na capa do livro. Muitas vezes, o nome do tradutor aparece num sítio
qualquer, semi-envergonhado.
2. Desde 1989, Kraus publicava a sua própria revista. No início, era
uma revista como outras, com vários autores a colaborar, mas a partir de
determinado momento ele escreve a revista sozinho. São muitos milhares de
páginas. Desde muito cedo, ele tinha desenvolvido na revista uma técnica que
podemos chamar de glosa documental, isto é, a citação seja de um texto de
imprensa, seja de um texto literário, seja de uma entrevista, do que for. Ele
pegava num fragmento, por exemplo, de uma notícia de jornal e trabalhava-o do
ponto de vista de sublinhar aquilo que nessa notícia era revelador do estado de
uma época, do estado de uma sociedade. Ele tinha aperfeiçoado esta técnica já
num contexto de guerra, durante a guerra dos Balcãs de 1911-1912. Tinha
acompanhado de perto a forma como a imprensa austríaca cobria a guerra nos
Balcãs e tinha encontrado exemplos perfeitamente chocantes de insensibilidade
perante o sofrimento e de promoção do ódio belicista.
Alguns textos dele, de 1911 e 1912, são reproduções de notícias de
jornal, que num novo contexto da revista se tornam reveladoras dessa violência.
Na verdade, o que ele faz em "Os Últimos Dias da Humanidade" é levar
esta técnica até às últimas consequências. Ele começou a escrever a peça em 1915,
muito perto do início da guerra, e foi escrevendo e incorporando muitos dos
textos que ia publicando na revista e que transformava em cenas. Há cenas
inteiras de citações. Por exemplo, as cenas em que aparece uma jornalista, que
foi a primeira jornalista mulher acreditada como correspondente de guerra. Os
textos que ela enviava da linha frente eram um chorrilho de lugares-comuns. Ela
chega junto do cabo artilheiro e pergunta: "Como é que se sente? Diga-me o
que lhe vai no íntimo." Explora o lado sentimental, muito a partir de uma
ideia de herói e de uma visão romântica da guerra. A jornalista aparece como
uma personagem e o que a personagem diz corresponde ao texto dos seus folhetins
jornalísticos.
Há, no trabalho de Kraus, uma preocupação documental e, como os documentos não paravam de chegar, porque os jornais publicavam-se todos os dias, porque as conversas de rua que ele ouvia e reproduzia, se produziam todos os dias, a peça ia crescendo. Em 1919, publicou uma primeira versão e, em 1922, uma segunda versão mais extensa. Perto do final dos anos 1920, ele diz o seguinte: deixei mil cenas que ficaram por escrever, aqui vai mais uma. Podia-se sempre acrescentar. A realidade não deixava de fornecer motivos permanentes de indignação.
3. Há uma frase famosa de Paul Valéry que diz: depois dessa guerra, a civilização europeia ficou a saber que era mortal.
Há, no trabalho de Kraus, uma preocupação documental e, como os documentos não paravam de chegar, porque os jornais publicavam-se todos os dias, porque as conversas de rua que ele ouvia e reproduzia, se produziam todos os dias, a peça ia crescendo. Em 1919, publicou uma primeira versão e, em 1922, uma segunda versão mais extensa. Perto do final dos anos 1920, ele diz o seguinte: deixei mil cenas que ficaram por escrever, aqui vai mais uma. Podia-se sempre acrescentar. A realidade não deixava de fornecer motivos permanentes de indignação.
3. Há uma frase famosa de Paul Valéry que diz: depois dessa guerra, a civilização europeia ficou a saber que era mortal.
Havia esta sensação de cesura, de fim de uma época. O historiador Eric
Hobsbawm, que tinha origem austríaca, diz que na família dele, quando falavam
dos anos da paz, referiam-se aos anos antes da Primeira Guerra Mundial, porque
os anos que mediaram entre a Primeira e a Segunda Guerra já não eram anos da
paz.
Era uma época que se tinha encerrado definitivamente e tinha começado
uma crise que depois desemboca no nazismo, no fascismo, nos nacionalismos
europeus e na Segunda Guerra Mundial e no Holocausto.
O tradutor está lá e o tradutor não se limita a servir de ponte. O
tradutor interfere. (...) São muito poucas ainda as editoras que colocam o nome
do tradutor na capa do livro.
O Kraus teve a presciência de perceber isso mesmo, de uma maneira
muito mais lúcida do que possivelmente a maior parte dos seus contemporâneos.
Kraus captou muito bem a modernidade da guerra. Kraus chamou à guerra a
aventura técnico-romântica. Captou perfeitamente o momento em que a ciência e a
técnica estavam a ocupar o lugar decisivo. Hoje, um combatente pode ser alguém
que está em Los Angeles a manipular um drone.
Uma guerra tecno-romântica é uma guerra que é desenvolvida com todos
os meios da tecnologia moderna, mas que preserva uma aura romântica e ideias de
heroísmo, que são completamente falsas, mas que, no fundo, são as ideias que
continuam a ser mobilizadas para que as pessoas aceitem a sua condição de
combatentes e sejam levadas a cometer crimes.
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