terça-feira, 13 de março de 2018

No caminho de Swann


“Durante muito tempo, deitava-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: ‘Vou dormir’. E meia hora depois, a ideia de que já era tempo de conciliar o sono me despertava: queria deixar o livro que julgava ainda ter nas mãos e assoprar a vela; dormindo, não havia deixado de refletir sobre o que acabara de ler, porém tais reflexões haviam tomado um aspecto um tanto singular; parecia-me que era de mim mesmo que o livro falava: uma igreja, um quarteto, a rivalidade de Francisco I e Carlos V. Essa crença sobrevivia por alguns segundo ao meu despertar, não ofendia a razão, mas pesavam como escamas sobre os olhos, impedindo-os de perceber que a vela já não estava acesa. Depois principiava a me parecer ininteligível, como, após a metempsicose, as ideias de uma existência anterior; o assunto do livro se deligava de mim eu ficava livre para me adaptar ou não a ele; logo recobrava a vista e me surpreendia bastante por estar rodeado de uma obscuridade, suave e repousante para os olhos, porém ainda mais talvez para o espírito, ao qual surgia como uma coisa sem causa, incompreensível, como algo verdadeiramente obscuro (...)”

 

(“No caminho de Swann” Marcel Proust)


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