segunda-feira, 15 de julho de 2013

Línguas como Patrimônio Imaterial
 
Gilvan Müller de Oliveira
fonte: Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística
06.01.2009
 
Línguas são artefatos históricos, construídos coletivamente ao longo de centenas ou milhares de anos. É através das línguas que as sociedades humanas, definidas como ?comunidades linguísticas? produzem a maior parte do conhecimento de que dispõem e é através da língua que são construídos os sistemas simbólicos de segunda ordem, como a escrita ou as matemáticas, e que permitem a ação humana sobre a natureza e sobre os outros homens.
Línguas são, nesse sentido, um tipo muito especial de SABER: são ao mesmo tempo o hardware e o software para a produção dos outros conhecimentos. Cada língua sintetiza, nas categorias que desenvolveu historicamente e nos seus modos de operação discursiva, experiências únicas e insubstituíveis.
Não são, como objetos - e muito menos como objetos culturais - de muito fácil percepção para a maioria das pessoas: as pessoas usam as línguas, não as percebem, como não percebem o ar que respiram e sem o qual não sobreviveriam mais de três minutos. Exceto em pontos muito específicos - aqueles em que as línguas interpelam diferenças convencionais, isto é, reprodutíveis pelo discurso: de classe, de gênero, de etnia, de religião - as línguas são o ponto cego da nossa vida social.
E no entanto, são uma das maiores expressões de diversidade que temos na humanidade: são aproximadamente 6.800 línguas no mundo, distribuídas de forma assimétrica entre os países. Embora 94% dos países do mundo sejam plurilíngues, isto é, tenham em seus territórios diferentes comunidades linguísticas, oito países concentram mais da metade das línguas do globo: Papua Nova-Guiné, Indonésia, Nigéria, Índia, México, Camarões, Austrália e Brasil.
No Brasil são faladas cerca de 210 línguas por cerca de um milhão de cidadãos brasileiros que não têm o português como língua materna, e que nem por isso são menos brasileiros. Cerca de 190 línguas são autóctones, isto é, línguas indígenas de vários troncos linguísticos, como o Apurinã, o Xokléng, o Iatê, e cerca de 20 são línguas alóctones, isto é, de imigração, que compartilham nosso devir nacional ao lado das línguas indígenas e da língua oficial há 200 anos, como é o caso do alemão, do italiano, do japonês.
O fato de termos aprendido que a situação ?normal? no mundo é a situação de monolinguíssimo e de termos aprendido a ver o plurilinguíssimo como uma anomalia, é mais um produto da história da criação do Estado-Nação nos últimos 300 anos, quando se estabeleceu o desiderato de ?um Estado, um Povo, uma Língua?, tão prejudicial à construção da cidadania. O Estado-Nação moderno e monoglota foi o responsável pelos maiores glotocídios, isto é, assassinatos de línguas de toda a história da humanidade até o presente momento. Só para dar um exemplo: calcula-se que se falavam no que é hoje o território brasileiro, em 1500, cerca de 1.080 línguas, das quais restaram hoje 15%: as 190 línguas já referidas. 85% das línguas desapareceram sem deixar vestígios, já que se tratava de línguas ágrafas, isto é, sem escrita, como aliás a maioria das línguas do mundo.
Darcy Ribeiro calcula que na primeira metade do século XX desapareceram no Brasil 67 línguas. E no entanto, línguas desaparecem muito menos de morte morrida, e muito mais de morte matada. São vítimas muito menos das mudanças históricas nas condições de veicularidade, de ampliação dos mercados, por exemplo, do que de políticas culturais - nesse caso chamadas de políticas linguísticas - de proibição, de desautorização, de minorização, de exclusão da escola; são vítimas da ideia de que a cidadania tem que ser monolíngue, da concepção que falar mais que uma língua é algo que deve ser evitado.
O Brasil tem uma triste tradição de políticas de destruição do patrimônio linguístico nacional - porque é disso que se trata: de compreendermos como e porquê línguas são um patrimônio para nosso país. Nenhum país da América Latina manteve tanta coerência entre o Diretório dos Índios do Marquês de Pombal - de 1753 - de um lado, e as 143 páginas de legislação anti-linguas produzido entre 1911 e 1945, recentemente compiladas pelo IPOL - Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística, e que atingiu seu ponto alto na chamada ?Campanha de Nacionalização do Ensino? do Estado Novo varguista. Pombal atacou as línguas indígenas e muito especialmente a Língua Geral, conhecido leigamente como Tupi; Vargas se concentrou nas línguas de imigração, com respingos importantes contra as línguas indígenas. Em vários outros momentos da nossa história, porém, podemos identificar os dispositivos de construção do monolinguíssimo e a violência desencadeada contra cidadãos brasileiros por causa das línguas que falavam. A política de estado no Brasil sempre foi a política da língua única.
E no entanto, continuamos hoje com políticas linguísticas refratárias à ideia de pluralidade e diversidade. É verdade que a Constituição de 1988 incorporou pela primeira vez na história o reconhecimento dos povos indígenas como etnias que têm o direito coletivo à sua cultura e à sua língua, provocando assim uma ruptura com a coerente política de ?integração? que vinha desde a Colônia. É verdade que temos hoje 115.000 alunos indígenas estudando em quase 3.500 escolas bilíngues, sob a coordenação de estados e municípios.
Mas é verdade também que os direitos linguísticos indígenas não foram estendidos aos falantes de outras línguas brasileiras, muito especificamente as línguas alóctones.
 
Línguas Brasileiras, um conceito com o qual só temos a ganhar: "Línguas brasileiras são línguas faladas no território nacional por comunidades linguísticas de cidadãos brasileiros".
 
Indígenas, quilombolas ou nipo-brasileiros, são todos brasileiros, logo, suas línguas são línguas brasileiras.
É verdade, além disso, que as escolas indígena bilíngues são bilíngues, na sua maioria absoluta, só no papel, porque o bilinguismo é estranho à tradição educacional brasileira, voltada historicamente para a imposição da língua única. Embora "bilíngues", as escolas indígenas têm sido muito mais um fator para a perda linguística do que para a manutenção e o desenvolvimento de uso das línguas.
Nesse sentido, é urgente - muito mais do que urgente - que o Estado Brasileiro passe a ver essa importante faceta da diversidade constitutiva do Brasil. A diversidade não é só racial, étnica, de gênero, regional, a diversidade também é linguística.
A década de 1990 viu a formulação da perspectiva fundamental de reconhecer e levar a efeito os DIREITOS LINGÜÍSTICOS das comunidades de brasileiros que falam outras línguas - minoritárias e minorizadas - em conformidade com o que reza a DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS LINGÜÍSTICOS apresentada pela UNESCO na Conferência de Barcelona em 1996 e traduzida e publicada no Brasil apenas em 2003.
O IPOL - Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística, entidade da qual sou coordenador, e que há muitos anos interage com os falantes das línguas minorizadas do Brasil no sentido de aportar-lhes apoio técnico para seus projetos linguísticos, vem trazer à discussão uma proposição de política federal de reconhecimento das comunidades linguísticas e das línguas como patrimônio, buscando o IPHAN e o Ministério da Cultura como interlocutores. Sou muito grato, aproveito a ocasião para agradecer, aos organizadores desta Conferência, pela oportunidade de podermos apresentar a ideia neste painel, onde a proposição pode ter uma audiência qualificada e especializada.
A criação de um LIVRO DE REGISTRO DAS LÍNGUAS, ao lado dos outros livros de registro já existentes no âmbito do programa de patrimônio imaterial brasileiro, como o livro de registro dos saberes, o livro das celebrações, ou o livro dos lugares, levaria ao reconhecimento, pela primeira vez na história do país, de que as línguas são parte do patrimônio cultural brasileiro. De que queremos que as línguas das nossas comunidades linguísticas estejam aqui no futuro.
A dinâmica de registro a ser pensada e executada tocará, sem dúvida, em várias questões que não têm sido tematizadas com frequência no país. Uma delas, e não a mais importante, é que enquanto o Brasil, sistematicamente, desconhece sua riqueza linguística e não pensa uma política para uma gestão do conhecimento produzido nestas línguas, entidades norte-americanas e europeias, por exemplo, às vezes em parceria com entidades brasileiras, às vezes não, têm registrado nossas línguas e composto acervos no exterior, onde esta informação é processada de vários pontos de vista. É o caso de um dos maiores bancos de dados de línguas do mundo, o Ethnologue, da entidade norte-americana Summer Institute of Linguistics, que usou e tem usado a atividade missionária no Brasil e em dezenas de países não só para "salvar as almas" dos indígenas, mas também para coletar informação linguística. É o caso também do Projeto de Documentação de Cinco Línguas Tupi Urgentemente Ameaçadas, financiado pelo Endangered Languages Documentation Programme da Inglaterra, ou dos projetos com as línguas Kuikuro, Aweti, Trumai, Tiriyó, Mawé e Bakairi financiados pelo Programa DOBES, da Fundação Volkswagen, da Alemanha, entre outros.
É claro que não estou querendo sugerir que estes projetos, especialmente os que têm parceiros brasileiros, devam ser vistos com suspeita, ou, como tem sido às vezes feito, que por associação à ?biopirataria? componhamos a palavra ?glotopirataria?, isto é, a pirataria das riquezas linguísticas dos países pobres pelos países imperialistas. Mas merece nossa atenção o fato de a riqueza linguística do país despertar mais atenção no exterior do que aqui, e o fato de que essa questão não passe pela atenção qualificada do Estado.
Inexiste até o momento um programa que dê unidade aos trabalhos descritivos realizados e que ultrapasse a questão apenas da documentação técnica da língua para fins acadêmicos, incorporando a questão dos DIREITOS LINGÜÍSTICOS dos falantes e, ao lado disso, o que é mais importante: o reconhecimento do Político que há nessa questão - a inclusão, e mais do que isso, a redefinição da associação proposta pelo Estado Brasileiro entre língua e cidadania, língua e identidade.
O Livro de Registro das Línguas reúne as condições, como instrumento de Estado e como instrumento de cidadania, para ser pivô na elaboração de uma política nacional de línguas minoritárias e minorizadas, incluindo-se aí toda a riqueza das formas orais populares do português. Habilita-se a esse papel pela credibilidade do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e pelas políticas de inclusão do Governo Federal. Habilita-se ainda pela possibilidade de ser, desde onde funcionará, o articulador dos movimentos sociais dos falantes de línguas minoritárias e dos grupos intelectuais preocupados com a perda linguística no país.
Diz o sociolingüista Louis-Jean Calvet que não são os homens que existem para servir às línguas, são as línguas que existem para servir aos homens. Para que isso ocorra, entretanto, precisamos reconhecer as línguas e através delas o que é mais importante: AS COMUNIDADES LINGÜÍSTICAS BRASILEIRAS. Precisamos formular uma política cultural - isto é, uma política linguística - que reconheça todas as línguas de todos os brasileiros. A criação, no setor do patrimônio imaterial do IPHAN do Livro de Registro das Línguas é uma oportunidade histórica que temos para superar o colonialismo da língua única e, coerentemente com a política de inclusão social e de construção da cidadania do Governo Federal afirmar que é possível ser brasileiro em muitas línguas.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário