sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Preciso muito falar com você...


Ele voltou-se. Umedeceu com a ponta da língua os lábios secos. E teve um meio sorriso que lhe deu à fisionomia uma expressão desamparada.
- Eu estava tão distraído - desculpou-se abotoando o paletó.
Você não estava distraído, pensei responder-lhe, você estava na defensiva. Preparava-se para uma luta. Era com o Diabo? quis gracejar. Contive-me. Não cabia agora nenhum gracejo.
- Acho que podemos enfim conversar. Ou não?
Ele escudou-se atrás da mesa. Baixou o olhar para os meus pés.
- Você está parecendo uma menina assim descalça...
- Gosto de andar descalça no verão - murmurei aproximando-me. - André, preciso muito falar com você.
Apesar da semiobscuridade da sala, notei que sua expressão estava agora mais firme. Ele se recompunha.
- Sim, precisamos conversar - concordou num tom de homem de negócios que vai ver se dispõe de algum tempo livre em sua agenda. - Mas vamos acender a luz?
Antes que ele chegasse ao abajur, segurei-lhe a mão por detrás. Por um rapidíssimo segundo ficamos de mãos dadas no escuro, imóveis e tão próximos que cheguei a sentir sua respiração. Mais um passo e poderia beijá-lo na boca. Contudo, mais profundo ainda do que o beijo era aquele halo espesso que nos envolvia e nos mantinha em suspenso.
- Anoiteceu - disse André desvencilhando-se. Acendeu a luz. - Não está melhor assim?
- Não, estava melhor antes - respondi acendendo um cigarro (...)

(“Verão no aquário”. Lygia Fagundes Telles)



Nenhum comentário:

Postar um comentário