quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Se é verdade que apenas podemos viver uma pequena parte daquilo que há dentro de nós, o que acontece com o resto?

De mil experiências que fazemos, no máximo conseguimos traduzir uma em palavras, e mesmo assim de forma fortuita e sem o merecido cuidado. Entre todas as experiências mudas, permanecem ocultas aquelas que, imperceptivelmente, dão às nossas vidas a sua forma, o seu colorido e a sua melodia. Quanto depois, tal qual arqueólogos da alma, nós nos voltamos para esses tesouros, descobrimos quão desconcertantes eles são. O objeto da observação se recusa a ficar imóvel, as palavras deslizam para fora da vivência e o que resta no papel no final não passa de um monte de contradições. Durante muito tempo acreditei que isso era um defeito, algo que deve ser vencido. Hoje penso que é diferente, e que o reconhecimento de tamanho desconcerto é a via régia para compreender essas experiências ao mesmo tempo conhecidas e enigmáticas. Tudo isso parece estranho, eu sei, até mesmo extravagante. Mas desde que passei a ver as coisas assim, tenho a sensação de, pela primeira vez, estar atento e lúcido.


(“Trem noturno para Lisboa”, Pascal Mercier)



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